‘La Révolution’, da Netflix, adiciona mortos-vivos à Revolução Francesa
A série de terror é uma divertida, mas nada sutil alegoria do célebre evento histórico: os nobres de sangue azul devoram (literalmente) os plebeus
“Um povo com medo, obedece. Um povo sem nada a perder, se revolta”, diz um integrante da corte francesa do século XVIII ao novo conde. O rapaz engomadinho, transbordando crueldade, chegou ao poder pesando ainda mais a já insuportável mão de ferro sobre os camponeses do condado de Montargis. Um detalhe relevante: o tal conde é um morto-vivo, algo entre um zumbi com fome de carne humana e um vampiro de elevada autoestima, com força descomunal e sentidos super-aguçados. Logo, não bastasse os impostos excessivos e o trato desumano com as classes mais baixas, a aristocracia representada pela série La Révolution devora (literalmente) pessoas pobres de que, oras bolas, ninguém vai sentir falta.
O novo programa da Netflix, que logo entrou para o ranking de mais populares da plataforma, transita entre a crítica social à la Les Misérables e os elementos típicos do terror, fazendo uma releitura peculiar dos gatilhos que desencadearam a Revolução Francesa de 1789. A produção original da França, assinada pela dupla ainda pouco conhecida Aurélien Molas e Gaia Guasti, é uma alegoria criativa e ácida sobre o célebre levante popular, um divisor de águas da história do país. O roteiro, aliás, é exageradamente explícito na mensagem que deseja passar.
A trama se passa em 1787, dois anos antes da Queda da Bastilha. O assassinato hediondo de uma jovem camponesa, morta e parcialmente devorada, suscita uma investigação paralela feita pelo médico da prisão, Joseph Guillotin (Amir El Kacem) – na vida real, o inventor da guilhotina (que era contra a pena de morte, mas tentou estender ao povo a cortesia de uma morte rápida dada aos mais ricos). Guillotin suspeita que o acusado de matar a garota, um africano estrangeiro, seja inocente. Em sua busca, ele descobre que o caso não é isolado, nem tão simples, encostando de um lado nos aristocratas e do outro em rebeldes que planejam uma revolução. No meio das duas divisões está a condessa Élise de Montargis (Marilou Aussilloux), que busca o pai desaparecido, enquanto alimenta simpatia pelo povo jogado às traças. Ela tem uma irmã mais nova, Madeleine (Amélia Lacquemant), uma garota atormentada por pesadelos e visões responsáveis por algumas das cenas mais assustadoras da série.
O curioso médico descobre que o real assassino está doente de uma enfermidade chamada por ele de sangue azul. Uma nova peste tenebrosa, que transforma os homens em canibais e faz com que eles retornem da morte constantemente. Cortar suas cabeças é a única maneira de eliminá-los.
Percebe-se então que não há sutilezas nas metáforas do roteiro. Enquanto na série o sangue azul é literalmente azul entre os infectados, na vida real o termo tem sido historicamente associado às famílias nobres de reinos da Europa. Diz-se que a pele extremamente branca dos que viviam nos castelos evidenciava as veias de tonalidade distinta “azulada”, quando comparada às peles bronzeadas e sujas dos camponeses. Já a decapitação como meio para parar os “mortos-vivos” foi a mesma sentença dada à corte do rei Luís XVI, que acabou guilhotinado.
A alegoria mira ainda questões dos dias de hoje: Joseph Guillotin e o primeiro acusado de assassinato, o africano Oka (Doudou Masta), são estrangeiros repelidos pela sociedade francesa, como os refugiados contemporâneos. A desigualdade social, apesar de extrema na série, faz as vezes de uma alfinetada no atual momento do país europeu, que voltou a apresentar um maior distanciamento entre as classes sociais.
A série é divertida. Mas vale ressaltar que, se você busca uma representação histórica e apurada da Revolução Francesa, melhor procurar um bom livro. La Révolution é entretenimento puro — com muitos sustos, violência e sangue, seja azul ou vermelho.