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‘Nenhuma série vai agradar a todos’, diz Gautier Lee, de ‘De Volta aos 15’

Um dos nomes por trás do roteiro e da direção do programa, Lee – que é não-binária, negra e lésbica – falou a VEJA sobre representatividade no audiovisual

Por Mariana Carneiro Atualizado em 5 set 2024, 18h55 - Publicado em 5 set 2024, 16h41

A terceira e última temporada de De Volta aos 15, série nacional estrelada por Maisa Silva e Camila Queiroz, está no top 10 de produções mais vistas em língua não inglesa da Netflix no mundo. Baseada no livro homônimo de Bruna Vieira, a produção segue Anita, uma mulher de 30 anos que consegue retornar à época do ensino médio quando acessa seu antigo blog. A trama também discute temas sensíveis que permeiam a adolescência, como identidade de gênero e orientação sexual. Um dos nomes por trás do roteiro e direção da série, Gautier Lee — cineasta negra, lésbica e não-binária — falou a VEJA sobre o processo de criação do programa e o papel da representatividade no audiovisual. Confira:

A terceira temporada de De Volta Aos 15 está no top 10 mundial de produções mais vistas em língua não inglesa da Netflix. Como é, para você, ter participado de uma série desse alcance? A terceira temporada trouxe um buquê de novidades – a série não se passa mais em 2006, e sim em 2009; os personagens agora têm 18 anos e estão na faculdade. A produção continua nostálgica, mas em uma época um pouquinho diferente. Mantivemos os temas de autodescoberta da primeira e segunda temporada, mas também introduzimos novas preocupações. A vida universitária é muito diferente da vida no ensino médio — você mora em república, precisa de dinheiro, consegue um emprego, não tem tempo para nada, e ainda tem que lidar com amizades e namoros. Cada um dos nossos personagens está enfrentando algum desses conflitos. É incrível e reconfortante saber que conseguimos colocar esse projeto no top 10 da Netflix. Fico sem palavras, porque isso é resultado de um trabalho coletivo. A sala de roteiro tinha uma dinâmica excelente, todo mundo ficou muito próximo. Conseguimos construir a série de forma que cada um de nós estivesse presente. Nossas personalidades são muito diferentes, mas trabalhamos juntos nas piadas, nas personalidades dos personagens, na trama, na narrativa… tudo isso é uma grande conquista.

Uma personagem de destaque na trama é a Camila, que se descobre uma mulher trans na adolescência e passa por um processo de transição na segunda temporada da série. Como foi fazer parte do desenvolvimento dessa personagem? Na sala de roteiro, sempre tentamos trazer histórias sobre o amadurecimento dos personagens de uma forma sensível, para que a nossa audiência assistisse e pudesse sentir conforto. Levamos isso para a trama da Camila na segunda temporada, especialmente no seu processo de aceitação e autodescoberta. É um processo muito bonito, desde as discordâncias que ela teve com o pai por causa de suas roupas, até o pai errando, mas tentando chamá-la de “Camila” e se referir a ela no feminino. Conseguimos criar isso de forma sensível e autêntica, levando em conta a realidade da época — a segunda temporada se passa em 2006. Mas a gente não precisa do real em sua totalidade. Já temos muita coisa triste na realidade, e buscamos oferecer algo mais leve e positivo. De Volta Aos 15 é uma série para cima, que dialoga com todos os públicos. A galera mais jovem, de 15, 16, 17 anos, se identifica com a série, e a galera da minha idade, que já passou dos 30, também se identifica porque viveu aquela época. Isso é muito legal, e talvez um dos motivos para estarmos no top 10 da Netflix. A Camila foi uma personagem muito gostosa de escrever. Todo mundo na sala de roteiro contribuiu para a trajetória dela e tratou isso com muita seriedade. Não poderíamos fazer essa história de qualquer jeito, e conseguimos construir algo legal, o que me deixa muito orgulhosa.

Existe uma cobrança grande por verossimilhança em narrativas LGBT no audiovisual — a série Heartstopper, da Netflix, por exemplo, já foi criticada por retratar um romance adolescente gay de forma leve e positiva. O que você acha disso? Eu acho que, primeiro, nenhuma série vai agradar a todo mundo. Não tem como, é impossível. Sempre haverá pelo menos uma pessoa que não vai gostar ou não vai se identificar, e isso faz parte da vida. Acho que isso é importante. Pensando em quem reclama que Heartstopper não é real, acho que isso não é o que a série propõe. Para mim, a série é uma comédia romântica adolescente, e ela entrega exatamente isso. Se vou assistir a uma série desse gênero, é isso que espero: dois personagens fofinhos se amando, tendo encontros e se assustando com o primeiro amor. Não quero ver, por exemplo, um drama sobre a morte de uma pessoa trans que foi relevante. Claro que, eventualmente, eu posso querer ver um documentário sobre a morte dessa suposta pessoa, mas não vou esperar encontrar uma comédia romântica fofinha nesse contexto. É importante ter essa compreensão de que há coisas que simplesmente não vão te agradar. Não devemos nos prender a uma série que não nos agrada quando estamos precisando de algo mais leve. Está tudo bem não gostar de uma série e, igualmente, está tudo bem gostar dela. Às vezes, as pessoas pegam pesado demais no sentido de que tudo precisa ser educativo ou dramático e violento. Mas gosto é gosto, e isso deve ser respeitado.

Como avalia a diversidade no audiovisual hoje em dia, principalmente em séries voltadas para o público adolescente? Eu acho que hoje em dia temos uma representatividade muito maior. Lembro que comecei a assistir Pretty Little Liars na adolescência e, no primeiro episódio, achei a série aceitável. No segundo episódio, pensei “ok”, e no terceiro episódio, quando vi duas meninas se beijando, aquela virou a melhor série do mundo para mim, facinho, facinho. Fiquei sete anos assistindo aquela série porque tinha mulher beijando mulher. Uma das personagens lésbicas era negra, e eu conseguia me ver ali. Isso me fazia sentir pertencente e não maluca. Ver alguém igual a mim na tela, com os mesmos desejos e pensamentos, teve um impacto enorme na minha vida. É reconfortante saber que existem histórias e personagens com os quais você pode se identificar e se apegar. 

E como você avalia a diversidade por trás das câmeras? É um pouco contraditório falar sobre representatividade por trás das câmeras, porque sempre existiram profissionais negros e LGBT trabalhando ali, mas eles não estavam em posições de decisão. Tenho notado uma melhoria nesse aspecto. Quando comecei a trabalhar com direção e roteiro, havia poucas pessoas negras no meu ambiente de trabalho. Durante as gravações do meu curta Desvirtude (2021), nós éramos apenas cinco pessoas negras em um grupo de 15 pessoas. Ainda assim, houve um momento em que um dos meninos da equipe comentou: “esse é o set com mais pessoas negras em que eu já trabalhei”. Mas eram só cinco em um grupo de 15, o que não é muita coisa. Desde o início da minha carreira até agora, sinto que a situação tem melhorado. A busca por profissionais negros e LGBT aumentou, e isso ajuda bastante, mas ainda precisamos de mais. A quantidade ainda é muito desbalanceada, e há muito caminho pela frente. A esperança é que a situação continue melhorando nos próximos anos. Não vou mentir: é bom ver as mudanças, mas ainda há muito a fazer.

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