O roteiro de comédia romântica já se repetiu à exaustão: a jovem desajeitada, nerd e potencialmente gordinha se apaixona pelo garoto popular, mas ele só a nota quando a mocinha passa por uma transformação radical, até virar uma jovem de aparência padrão. Bridgerton, série de sucesso da Netflix que acaba de estrear uma ótima terceira temporada, inverte essa lógica — seguida, aliás, pelo próprio livro em que se baseia a história. Na saga dos best-sellers de Julia Quinn, é quando Penelope Featherington perde peso que finalmente conquista o melhor amigo, Colin — por quem é apaixonada desde os 15, embora o pretendente a colocasse na “zona da amizade”. Na versão televisiva produzida pela sempre militante Shonda Rhimes, veio a decisão ousada: manter a personagem vivida pela bela Nicola Coughlan da forma como ela é — mudando apenas seu figurino e trabalhando sua autoconfiança. “A Penelope tenta ter uma transformação física, mas percebe muito rápido que é só estética e não significa nada se você não mudar o seu interior”, analisou a irlandesa Coughlan a VEJA.
O peso era a última barreira estética que Hollywood precisava quebrar para se adequar às demandas por mais diversidade de etnias e corpos na TV — e várias produções recentes deram passos importantes nisso. Um indício é o espaço conquistado pela atriz Chrissy Metz como a Kate de This Is Us, hit da NBC que conquistou 39 indicações ao Emmy. Série que domina o ranking da Netflix atualmente, Bebê Rena chamou atenção mundial ao narrar a história de Richard Gadd, comediante que passou anos sendo perseguido por Martha. Jessica Gunning, intérprete da stalker acima do peso, cumpre assustadoramente bem seu papel — e virou sensação.
O reconhecimento tardou — mas é bem-vindo. Há anos se aponta a falta de profundidade dada a personagens plus size, usadas apenas como alívio cômico e sem histórias próprias. Também da Netflix, Insatiable foi um exemplo depreciativo. Na série, a adolescente Patty (Debby Ryan) sofria bullying na escola por estar acima do peso e, após perder uma quantidade massiva de gordura, decide se vingar dos haters, vendo o emagrecimento como superação. E o comportamento destrutivo de Patty só era aceitável por ela ser magra.
Lançada em 2016, This Is Us representou o início de uma virada. Ao longo da série dramática, a personagem de Chrissy Metz enfrenta as dificuldades da obesidade e encara as próprias inseguranças com a ajuda de Toby (Chris Sullivan), homem que ela conhece em um grupo de apoio para pessoas com sobrepeso. No desfecho, porém, os dois se separam por estar em fases completamente diferentes: ele vira crossfiteiro, enquanto ela, enfim, se aceita como é. Uma mensagem empoderada, impulsionada pelo movimento body positive (positividade corporal) ao redor do mundo.
Agora, com a leva de produções como Bridgerton e Bebê Rena, as personagens ganham camadas ainda mais realistas e respeitosas. Em Bridgerton, Penelope destoa das outras debutantes esbeltas da sociedade, mas sua mudança de fase na série não passa pelo emagrecimento, como no livro original, e sim por seu figurino mais destemido e na forma como ela se comporta perante os outros, buscando autoconfiança. O peso não é uma questão, e o mérito disso é da showrunner Jess Brownell, que tomou a decisão de não sujeitar a personagem e a atriz a um processo de dieta que passaria a mensagem usual de que é preciso perder peso para ser feliz.
Curiosamente, a cruzada pela aceitação nas séries vai na contramão de outra tendência atual na moda e em Hollywood: como provam as silhuetas de Zendaya ou Bruna Marquezine, a magreza extrema está de volta com tudo. O que retoma um padrão conhecido: na clássica Friends (1994-2004), Monica e Rachel — personagens de Courteney Cox e Jennifer Aniston — ostentavam suas clavículas salientes e barrigas negativas. Na mesma sitcom, uma piada recorrente sobre Monica ter sido gorda na adolescência hoje tornou-se tóxica, já que a atriz precisava usar o fat suit (traje gordo) para ser alvo de chacota. Ainda que em minoria, a presença de corpos femininos fora do padrão na tela é uma grande conquista.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893