Entre junho e agosto de 2001, centenas de jovens recrutados em comunidades do Rio de Janeiro, com pouca ou nenhuma experiência de atuação profissional, passaram por uma extensa preparação e se reuniram com os cineastas Fernando Meirelles e Kátia Lund para gravar Cidade de Deus. Lançado em agosto do ano seguinte, o filme que acompanha a formação da comunidade carioca de mesmo nome e a gênese do crime organizado revolucionou o cinema nacional e se consolidou como um clássico do chamado “favela movie”. Mais de duas décadas depois, personagens conhecidos do público, como o fotógrafo Buscapé, vivido por Alexandre Rodrigues, voltam à tela em Cidade de Deus: a Luta Não Para, série da HBO que estreia no domingo 25, cercada de expectativas. “Foi o projeto mais desafiador da minha carreira”, conta o baiano Aly Muritiba, que assumiu a direção da produção no streaming.
Ambientada no início dos anos 2000, a nova incursão na história que rendeu ao Brasil quatro indicações ao Oscar em 2004 retoma a vida de personagens como Buscapé e Berenice (Roberta Rodrigues) e apresenta novas figuras para narrar as mudanças na favela de Cidade de Deus nas duas décadas que separam as produções: depois da morte do bandido Zé Pequeno, a boca comandada por ele ficou aos cuidados de crianças, mas agora ressurge sob o poder de Curió (Marcos Palmeira), que garantiu certa tranquilidade na comunidade por anos — até a explosão de uma nova rivalidade na liderança do tráfico. Para além da guerra de facções, a série atualiza o filme original ao tratar de um elemento que redefiniu a dinâmica territorial do crime no Rio e que só avançou de lá para cá: a entrada em cena da organização chamada “polícia mineira”, embrião da milícia carioca. “O filme capta o momento em que a milícia está se estabelecendo”, explica Muritiba. “Nos dias de hoje, a Zona Oeste do Rio está parcialmente tomada por elas. E há a ligação estreita entre milícia e política, que conhecemos muito bem”, completa o cineasta, que gravou boa parte da série em São Paulo em razão de uma disputa territorial entre facções e milícias, que tornou “impossível filmar por lá”.
A república das milícias – Bruno Paes Manso
Com a mesma linguagem visual dinâmica eternizada pelo filme, a nova trama se equilibra entre a função de honrar o clássico nacional e a de adicionar novo tempero à narrativa. A solução para isso foi voltar as lentes para outra parte da história que acabou negligenciada anteriormente. “A série tem mais do olhar do morador, e não só o do traficante e o do policial”, diz Muritiba, citando a “correria” daqueles que, apesar da violência e do descaso do Estado, tentam viver com dignidade. Na série, ganham muito mais relevo as consequências da violência na vida dos moradores que a violência em si. Ela mostra, por exemplo, crianças forçadas a interromper uma aula de artes marciais e correr para casa, ao som do toque de recolher que sinaliza a guerra entre traficantes, e o papel de líderes comunitárias femininas como Berenice, que tinham participação mínima no filme.
Rio de Janeiro – Luiz Eduardo Soares
Consagrado como um dos longas brasileiros de maior repercussão internacional, Cidade de Deus mudou a forma com que o mundo, e até o próprio brasileiro, olhava para as favelas. “Depois do filme, os hotéis da orla começaram a entender que a comunidade também era uma potência. Houve um boom do favela tour”, recorda Alexandre Rodrigues (leia a entrevista). Hoje residente em São Paulo, o protagonista já morou em favelas como Cantagalo e Vidigal, e viu a transformação de perto. “Os gringos que vinham de fora assistiam ao filme e queriam ver aquela realidade, uma curiosidade que não existia antes”, conta ele, citando que o impacto se espalhou até para o comércio local.
Na vida pessoal, o sucesso do filme também lhe trouxe progresso, mas de maneira mais restrita: estrela de Cidade de Deus aos 19 anos, o ator, que hoje tem 41, teve uma carreira de altos e baixos. Cidade de Deus abriu portas para papéis na TV, mas ele reconhece que esperava mais. “Engoli muitas vezes o meu orgulho. Mas, se tiver de fazer um tipo de trabalho que não é artístico, eu vou fazer para sustentar minha casa”, diz ele, que há alguns anos chegou a trabalhar como motorista de aplicativo para ajudar nas contas. Com o pé sempre fincado no chão, característica que diz ter absorvido da mãe, Rodrigues acredita que a série pode ser um atalho para novas oportunidades. Mas não se deslumbra. “Estou ansioso para ver a repercussão”, afirma. Se depender do peso da história, a correria é garantida.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906