Os rivais que ameaçam hegemonia de Hollywood como meca do cinema
Com o mercado audiovisual cada vez mais competitivo, países oferecem incentivos e atributos que estão atraindo grandes estúdios
Quando a produção de A Casa do Dragão, da HBO, decidiu usar os cenários deslumbrantes da Espanha para o spin-off de Game of Thrones, a escolha não foi meramente baseada nas locações naturais de paisagens abertas e prédios históricos — distantes 10 000 quilômetros de Los Angeles. Outros fatores atraíram os grandes produtores ao país: tecnologia de ponta, mão de obra qualificada e mais barata, sindicatos de atores e roteiristas menos propensos a entrar em greve e incentivos fiscais do governo. O conjunto tornou mais econômico, enfim, produzir fora dos complexos de estúdios tradicionais de Hollywood — que vem perdendo o posto de meca do audiovisual com a crescente competitividade de países ávidos por abocanhar as cifras bilionárias dos blockbusters e que querem, de quebra, ampliar o turismo.
A tendência está cada vez mais presente nos bastidores de grandes produções, como Xógum: a Gloriosa Saga do Japão, série do estúdio FX/Disney que arrasou no Emmy deste ano com dezoito estatuetas. A série retrata a nação oriental do século XVII, mas suas gravações foram quase integralmente realizadas no Canadá, por causa das restrições da pandemia e pela produção de elite presente no país vizinho aos Estados Unidos.
Olhando além do horizonte mítico, mas custoso de Los Angeles, as produtoras perceberam o potencial oferecido mundo afora (leia o quadro). Principalmente em locais como Reino Unido, onde Game of Thrones e outros arrasa-quarteirões foram filmados; Malta, arquipélago no Mediterrâneo onde ficou o set de Gladiador e de sua sequência, que estreia em 14 de novembro; e até Nova Zelândia, lar de Peter Jackson, cineasta que projetou seu país ao adaptar O Senhor dos Anéis para o cinema por lá — agora, o Prime Video, da Amazon, foi até a Oceania para rodar a série derivada Os Anéis de Poder.
Esse movimento tornou-se tão acentuado que Hollywood, um polo impressionante surgido há mais de 100 anos e que por décadas abrigou os sets suntuosos de grandes clássicos, recentemente acusou o golpe. Produzir hoje em seu estado, a Califórnia, tem custos insustentáveis, causando a fuga de executivos e estúdios. Em 2023, o estado registrou participação de 27% nos empregos no setor audiovisual, uma queda de 8 pontos percentuais em relação ao ano anterior, de acordo com um relatório da Otis College, escola de design localizada em Los Angeles — vagas que migraram, claro, para os atraentes Canadá ou Reino Unido. A região também viu a produção de reality shows despencar no segundo trimestre, de acordo com levantamento da FilmLA, que descobriu que as filmagens do formato caíram 60% em relação ao mesmo período no ano passado. “Projetos desse tipo não são elegíveis para incentivos pela Califórnia, mas ainda são parte importante da economia”, defendeu Philip Sokoloski, vice-presidente da organização.
Antes mesmo de sair dos Estados Unidos, as produtoras recorreram a outros estados mais “baratos”, como a Geórgia — cuja capital, Atlanta, quer assumir o posto de destino dos sonhos com leis de incentivo agressivas para as megaproduções. Só em 2024, foram injetados 2,6 bilhões de dólares em projetos de cinema e TV. “Consolidamos nossa reputação como um centro de produção reconhecido globalmente”, já declarou Kelsey Moore, diretora-executiva da Georgia Screen Entertainment Coalition.
Enquanto a Califórnia oferece apenas 20% de crédito para rodar lá, Nova York e Novo México surgem com propostas melhores. Já no exterior, o Reino Unido tem atraído produtoras, talentos e sets como os dos filmes Jurassic World 4, da Universal, a próxima sequência de Missão: Impossível, da Paramount, o reboot de Quarteto Fantástico, da Disney, além do terceiro longa de Knives Out, da Netflix. O British Film Institute estima que os gastos com filmes e programas de TV de ponta em 2023 atingiram cerca de 4,2 bilhões de libras esterlinas. Num ano em que Hollywood paralisou devido às greves de sindicatos de atores e roteiristas, a produção inglesa manteve-se a todo vapor — por isso, A Casa do Dragão e outros filmes cumpriram seus cronogramas normalmente.
A Ásia também se interessou por esse mercado, ofertando isenções fiscais polpudas. No ano passado, o Japão revelou um esquema de incentivo que oferece reembolso de até 50% dos impostos das produções no país, com um teto de 6,4 milhões de dólares. Isso atraiu as filmagens de G.I. Joe Origens: Snake Eyes (2021) e da segunda temporada de Tokyo Vice, da Max. A Tailândia, onde a próxima temporada de The White Lotus, da HBO, foi gravada, aprovou benefícios semelhantes em seu programa oficial para o setor.
Não à toa, Hollywood tenta reagir. Recentemente, a Califórnia aprovou uma verba de 152 milhões de dólares destinados a produções que passem a gravar no estado. Com isso, a série Fallout, do Amazon Prime Video, recebeu 25 milhões de dólares para fazer sua segunda temporada na região que viu nascer a indústria do cinema — seu primeiro ano fora rodado em Nova York e Utah. Foi-se o tempo em que produções como Casablanca (1942) podiam gastar milhões com façanhas como a recriação das ruas de Marrocos em um estúdio de Hollywood. Os ventos mudaram, e os blockbusters voaram para outros recantos do mundo.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915