É impossível pensar em Bridgerton sem que venham à mente cenas apimentadas. Série de língua inglesa mais vista da Netflix, a trama romântica de época teve como trunfo em sua primeira temporada a relação quente entre Daphne e o Duque de Hastings, que fizeram amor em todos os cantos. A segunda fase voltou mais comportada, mas o novo par vivido pelos atores Simone Ashley e Jonathan Bailey entregou uma sequência proibida para menores em meio aos jardins ingleses. O balé luxurioso foi coreografado pela americana Lizzy Talbot, que assume na série uma função cada vez mais presente nos sets de filmagem: a de coordenadora de intimidade. Com nome sugestivo e popularidade em alta nas produções do streaming, esses profissionais — em sua maioria mulheres — são responsáveis por planejar e fiscalizar cenas picantes, garantindo que não haja constrangimentos.
Lá fora, a tendência começou em 2017, depois que os abusos de Harvey Weinstein deflagraram o #MeToo em Hollywood e alertaram sobre a necessidade de um cuidado extra nos sets. Na ebulição dos protestos feministas, a atriz Emily Meade solicitou à HBO uma espécie de “protetora” para as cenas sexuais de The Deuce, série sobre a indústria pornográfica nos anos 1970 e 1980. “Fiz minha primeira cena de sexo aos 16. Foram muitas as vezes em que me senti desconfortável, tenha percebido isso na hora ou mais tarde”, declarou na ocasião. A experiência foi tão positiva que a HBO implantou a política de utilizar essas guardiãs do sexo de maneira recorrente. Não demorou até que outras plataformas, como Hulu, Netflix, Amazon Prime, Paramount+, Apple TV+ e Starz, seguissem a trilha, incorporando as profissionais em muitas produções. Neste ano, até a veterana (e abusada) Outlander, no ar desde 2014, passou a ter uma coordenadora de intimidade.
No geral, a rotina das guardiãs se assemelha à de um preparador de elenco, mas com olhar mais apurado para questões que possam causar algum desconforto. Tudo começa com um mapeamento do roteiro, para identificar cenas que mereçam cuidado especial, dos beijos calorosos e banhos com nudez aos lances de alcova em si. O segundo passo é falar com o diretor para entender o que ele espera de cada cena, e partir para uma conversa com os atores, ouvindo receios e sugestões. Com todos de acordo, os ensaios começam. É nessa fase que se definem os movimentos que serão executados diante das câmeras. A coordenadora acompanha toda a gravação e limita quem pode estar presente no set. O trabalho exige tato para conciliar a vontade da direção com o conforto do elenco e o resultado final — que precisa parecer natural (e convincente) para o público.
#Metoo and You: Everything You Need to Know about Consent, Boundaries, and More
Exemplo nacional da tendência, a série Lov3, da Amazon Prime Video, narra as descobertas sexuais de um grupo de jovens. A trama teve 22 cenas consideradas íntimas, todas coordenadas por Maria Silvia Siqueira Campos. “Não tem mais aquela coisa de abrir a câmera e deixar rolar. É tudo ensaiado”, explicou ela a VEJA. No currículo, a profissional tem ainda produções para o cinema e outras da Amazon, como Dom, e da Netflix, incluindo o recém-lançado hit A Princesa da Yakuza, em que há interação de atores de diferentes culturas. “A legislação ficou mais eficaz, e as empresas querem evitar constrangimentos que antigamente eram comuns”, diz.
Preparadora de elenco há mais de vinte anos, Maria Silvia passou por uma sabatina com profissionais nos Estados Unidos e vai encarar um curso de oitenta horas com mais três preparadoras da Amazon para auxiliar na formação de profissionais no Brasil. Essa nova cultura pode ajudar a evitar casos como o de Maria Schneider, que saiu traumatizada da famigerada “cena da manteiga” do filme O Último Tango em Paris (1972) — em que o diretor Bernardo Bertolucci não a alertou, deliberadamente, sobre o que sofreria nas mãos de Marlon Brando, sob a alegação de que queria captar sua reação “como menina, não como atriz”. Agora, felizmente, o sexo é muito mais seguro nas telas.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787
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