Aos 7 anos, o pequeno Vincent foi levado ao cinema pelo pai, o ator Jean-Pierre Cassel, para ver o clássico Orfeu Negro (1959), inspirado na peça do brasileiro Vinicius de Moraes e dirigido pelo francês Marcel Camus. Ambientada no Rio de Janeiro, e com trilha de Tom Jobim e Luís Bonfá, a produção encantou o jovem parisiense, que passou a nutrir um amor genuíno pelo Brasil. Hoje aos 56, Vincent Cassel é um ator consagrado e domina o português com maestria. Em entrevista a VEJA para divulgar a série Conexões, que chega à Apple TV+ na sexta-feira 24, Cassel fez questão de falar o idioma (leia a entrevista). “Pela primeira vez, a dublagem de meu personagem em português terá minha voz. Tenho orgulho disso”, diz.
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A série da Apple segue um emaranhado de conchavos políticos e esquemas de espionagem internacional deflagrados por um ataque de hackers. Cassel vive o misterioso Gabriel Delage, ex-agente acusado de envolvimento num ataque terrorista e que se alia à colega Alison Rowdy (Eva Green) para investigar a conspiração. A relação dos dois, no entanto, não se resume ao serviço secreto. Alison é seu antigo affair — e traz à baila erros e acertos da vida do ex. Enigmático e cheio de camadas, Delage sintetiza um tipo que é recorrente no currículo de Cassel: o homem atormentado pelo passado que, não raro, se equilibra entre a vilania e o sofrimento psíquico.
O pendor para a complexidade vem desde o início da carreira, com seu trabalho primoroso em O Ódio, do francês Mathieu Kassovitz. Lançada em 1995, a trama de crítica social pôs Cassel em evidência como o jovem Vinz, judeu suburbano que promete matar um policial caso seu amigo morra após ser espancado num interrogatório. A interpretação voraz do rapaz transtornado pelas injustiças rendeu a Cassel as primeiras indicações ao César Award, o Oscar francês. Anos depois, em 2009, ele conquistaria a estatueta ao dar vida ao gângster Jacques Mesrine — compatriota que, nos anos 60 e 70, foi responsável por assassinatos, roubos e sequestros na França, Estados Unidos e Canadá. Cassel começou a carreira no cinema francês, mas logo transcendeu seus limites. Nos anos 2000, abraçou as produções em língua inglesa, sempre em papéis que expõem as mazelas humanas. Em Cisne Negro (2010), o ator é Thomas Leroy, o professor exigente que leva a jovem bailarina Nina (Natalie Portman) à loucura.
Multicultural, ele morou no Brasil por cinco anos e mantém uma casa no Rio, para onde volta sempre que tem um tempo livre na agenda. Por aqui, já arriscou o português em produções nacionais como O Grande Circo Místico (2018), de Cacá Diegues. Mas suas verdadeiras paixões são a capoeira, a música — e a natureza do Brasil. Após catorze anos de casamento com a italiana Monica Bellucci, com quem tem duas filhas, Cassel se uniu em 2018 à modelo francesa Tina Kunakey (ela tinha 21 e ele, 51 à época). Da nova relação veio outra prova de amor ao Brasil: a filha do casal, de 3 anos, se chama Amazonie em homenagem à floresta. O astro francês, quem diria, deu frutos nos trópicos.
“Virei um carioca”
Seu trabalho é marcado por personagens complexos e atormentados — e Gabriel, de Conexões, também é assim. Por que essa preferência? Sou um pouco assim. É algo humano. Se você quer representar o lado verdadeiro de uma pessoa, precisa explorar seus defeitos. Somos complexos, nos agarramos ao passado e tentamos sobreviver com nossos erros. Perfeição é coisa de cinema.
A trama da série começa com o ataque de um terrorista hacker. Acha que isso é um perigo real no mundo de hoje? Com certeza. Nem falo de ataque terrorista — basta olhar para o nível da propaganda nas redes sociais. Estamos em um tempo de separação. É muito mais fácil controlar as massas assim. É justamente nisso que a série se aproxima do mundo atual.
Apesar da carreira na França, você viveu e mantém uma casa no Rio. De onde surgiu a relação com o Brasil? Começou aos 7 anos, quando meu pai me levou para assistir a Orfeu Negro. Vinicius de Moraes e Tom Jobim são poetas importantes. Acho que captei essa sensibilidade e me apaixonei pelo país. Desde então, sempre quis viajar para o Brasil. E quando descobri a capoeira foi o pretexto de que eu precisava. Hoje, virei um carioca. No Rio, me sinto livre, por isso volto ao menos duas vezes no ano.
O que mais o atrai por aqui? Minhas conexões no Brasil estão quase todas no mundo da música. João Gilberto foi um dos que me encantaram. Toda a poesia e a simplicidade nos acordes, e também nas letras. Ouço mais música brasileira do que qualquer outra.
De onde vem sua desenvoltura para atuar em várias línguas? A linguagem sempre foi importante para mim. Minhas filhas falam cinco idiomas. É uma riqueza familiar. Se você quer ser um ator internacional, é essencial. Estou sempre aprendendo.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829
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