A conspiração contra as eleições
A defesa da impressão do voto é um pretexto para deslegitimar o resultado das urnas
A mais eficiente arma eleitoral de Jair Bolsonaro para permanecer no poder a partir de 2023 não é a encomenda atrasada de milhões de doses de vacinas contra Covid-19, o novo projeto de Bolsa Família ou o apoio dos partidos do Centrão à reeleição, mas uma teoria da conspiração: a de que o sistema eleitoral é suscetível à fraude.
Fantasiada de dar mais transparência ao processo, a defesa da impressão do voto da urna eletrônica faz parte da estratégia bolsonarista criada para colocar em dúvida a legitimidade das eleições e contestar uma eventual derrota nas urnas.
Pesquisa PoderData feita duas semanas atrás mostra que 46% dos brasileiros rejeitam a ideia de um comprovante impresso do voto eletrônico nas eleições, mas espantosos 40% dos entrevistados são a favor. É um dado surpreendente em um país que não tem registro de fraude eleitoral desde a implantação das urnas eletrônicas em 1996 (descontado o choro de menino minado de Aécio Neves em 2014 que ele mesmo confessou ter sido “para encher o saco”). Para comparar: feita com cédulas de papel, a eleição no Rio de Janeiro de 1994, anterior à instalação das urnas eletrônicas, teve tanta fraude que foi anulada por unanimidade pelo Tribunal Regional Eleitoral e os eleitores precisaram comparecer de novo às urnas.
A fonte natural da teoria de conspiração é Bolsonaro. Em 7 de janeiro, no seu primeiro comentário sobre a tentativa de golpe no Capitólio, nos Estados Unidos, o presidente deu razão aos invasores que tentavam impedir a formalização da eleição de Joe Biden: “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”. Em ato pró-governo em maio, em Brasília, Bolsonaro disse que, se as eleições de 2022 não tiverem voto “auditável”, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva pode ganhar “pela fraude”.
Levantamento feito pela Diretoria de Acompanhamento de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV, da qual este articulista faz parte) mostrou a evolução de sete anos de postagens sobre fraudes eleitorais nas mídias sociais, o mais completo dossiê sobre como se propagam as teorias de conspiração. Entre 2014 e 2010, foram analisadas 337.204 publicações que colocavam sob suspeição a lisura das eleições. Os vídeos no Youtube sobre supostas fraudes eleitorais alcançaram 23,8 milhões de visualizações, sendo que vários deles eram manipulações óbvias, como apontou o TSE. Com a ascensão do bolsonarismo, o compartilhamento dos vídeos aumentou em escala industrial através das correntes de WhatsApp.
Corre na Câmara dos Deputados um projeto que obriga a Justiça Eleitoral a instalar uma impressora em cada urna eletrônica. Pela emenda constitucional da deputada bolsonarista Bia Kicis, cada urna eletrônica irá imprimir uma cópia do voto digitado. O eleitor vai conferir se a cédula impressa corresponde ao voto digitado e depositar essa cópia em uma urna. Se houver alguma suspeita sobre os resultados, as cédulas físicas serão contadas. A emenda não detalha, mas dá a entender que se algum partido pedir a recontagem de votos, o resultado das cédulas físicas terá precedência sobre a urna eletrônica. O projeto é inviável para as eleições de 2022, custaria R$ 2 bilhões para ser implantado, mas o que os bolsonaristas buscam não é melhorar o sistema, mas transformá-lo em mais confuso. O bolsonarismo cresce no barulho.
Em entrevista à Renata Lo Prete, do G1, a antropóloga Isabela Kalil, estudiosa do bolsonarismo, compara a teoria da conspiração sobre fraude nas urnas à uma apólice de seguro de Bolsonaro para o caso de uma derrota em 2022. “Se perder, ele pode dizer que a eleição foi fraudada e assim manter a sua base aquecida. Assim mesmo com uma derrota, ele manteria uma parte do eleitorado a seu lado sem acreditar no sistema”. É a mesma tática usada por Donald Trump. Kalil nota outro aspecto das mensagens nas correntes bolsonaristas, a de que a eleição seria controlada pelos militares, estando acima da Justiça Eleitoral.
Depois da defesa dos golpistas nos EUA e das substituições do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas e da submissão do Exército com a absolvição do general Eduardo Pazuello, seria natural entender a propagação das mentiras sobre fraudes eleitorais como uma preparação para uma tentativa golpe. Em entrevista ao repórter Chistian Kein, do Valor, o historiador Francisco Teixeira, especialista em questões militares, faz uma análise sofisticada:
“Estamos tratando essa crise olhando pelo retrovisor. O modelo de Bolsonaro não é o Brasil de 1964, é a Bolívia de 2019 e a invasão do Capitólio de Washington, em 2021”, afirma, numa referência a tentativas de golpes baseadas na atuação ou na inação das polícias. Para Teixeira, mais do que uma quartelada ao estilo clássico, com tanques na rua, o presidente trabalha para corroer a unidade dos militares para que eles não o atrapalhem em seu projeto autoritário, de não aceitar o resultado eleitoral em caso de derrota em 2022. A ideia da fraude carrega dentro de si a ideia de deslegitimação da democracia.