O destino da imensa maioria dos brasileiros já está traçado no nascimento. São necessárias nove gerações para que o filho de uma família pobre alcance a renda média do país, enquanto no Chile ou na Argentina essa mobilidade se dá em até três gerações. Dois de cada cinco adolescentes brasileiros vivem na pobreza, entre eles a metade dos jovens negros, e mesmo programas de êxito comprovados como o Bolsa Família são incapazes de, sozinhos, permitir que os filhos superem as condições de vida dos pais. No ponto oposto da pirâmide, a parcela do 0,1% de brasileiros mais ricos concentra mais de 10% da renda e o agronegócio, dínamo da economia neste século, paga de Imposto Territorial Rural apenas um milésimo dos tributos nacionais. É difícil ser otimista com o Brasil diante destas estatísticas, mas o livro Extremos – um mapa para entender as desigualdades do Brasil (editora Zahar/Companhia das Letras, 119 reais, o livro físico, 39,9o reais na versão online), do economista Pedro Fernando Nery, é um roteiro para colocar os indicadores em perspectiva.
“Para trabalhar com política pública é melhor que você seja otimista ou então não faz sentido. Da Constituição para cá tivemos avanços: o Brasil reduziu enormemente analfabetismo, a queda na mortalidade infantil foi tão expressiva que ganhamos 10 anos de expectativa de vida e o Bolsa Família teve um papel crucial na redução da pobreza e da pobreza extrema. Mesmo nestes últimos 10 anos tumultuados, aprovamos as reformas da previdência e tributária e o Bolsa Família triplicou de valor. Há muito a fazer, mas também motivos para não deixar as coisas como estão”, disse Nery.
Para ressaltar as distorções, Nery usa, como diz o título do livro, exemplos extremos. Ele viaja para Ipixuna, a 2.800 quilômetros de Manaus por rio (equivalente à distância entre Porto Alegre e Salvador por estrada), para retratar a miséria na Amazônia oriental, em comparação ao bairro paulistano de Pinheiros, com indicadores de desenvolvimento semelhantes aos da Noruega. O Distrito Federal, a mais rica unidade federação, serve de contraponto ao Maranhão, a mais pobre. O bairro paulistano do Morumbi, de maior longevidade, é o reverso de Mocambinho, bairro de Teresina onde a taxa de mortalidade passou dos 40 para cada mil nascidos vivos. A cidade gaúcha de Nova Petrópolis, onde há a maior concentração de aposentados, é a outra face da potiguar Severiano Melo, onde moram proporcionalmente o maior número de beneficiários do antigo Auxílio Emergencial. Em cada destino, Nery ilumina uma aberração da desigualdade brasileira.
O combate à desigualdade, afirma Nery, passa por uma reforma de renda.
“Existe espaço para ampliar a arrecadação sobre os mais ricos no Brasil. O Brasil tem de fato uma carga tributária alta, mas ela é muito mal distribuída. Já seria um grande avanço fazer os mais ricos pagarem os 27,5% de alíquota de imposto de renda como os demais brasileiros”, diz.
O debate proposto por Nery passa pelo Congresso, onde são crescentes as resistências à revisão de isenções tributárias e aumentos de impostos. “Existem resistências, mas esse debate precisa ser posto. Por uma ótica só econômica, a desigualdade é um entrave para o crescimento. O Brasil não terá uma melhora na produtividade dos seus trabalhadores com crianças malnutridas e sem oportunidade de educação”, afirma.
Segundo ele, debates como a revisão das vinculações de benefícios sociais ao salário mínimo, como o Beneficio de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial, devem ser feitas depois da taxação sobre a distribuição de dividendos. “Como vou falar de rever o BPC quando ainda aceito uma alíquota de 0% do imposto de renda para pessoas que ganham R$ 300.000 por mês de dividendos? Enfrentar a questão fiscal é uma questão de coesão social”, afirma. Além da cobrança sobre dividendos, Nery defende no livro uma maior tributação sobre heranças, propriedades rurais, uma reforma da previdência dos militares e funcionalismo público dos Estados e políticas sociais focadas em crianças e mães, com ênfase nas creches.
Embora assessore o vice-presidente Geraldo Alckmin, Nery não é próximo ao PT e teve vários embates com economistas do partido ao longo de 2019, quando foi um dos principais consultores do Senado na aprovação da reforma da previdência. A influência das ideias defendidas em Extremos é justamente por não ser um livro de propostas do governo Lula. O livro é uma indicação de como a discussão sobre equilíbrio fiscal e tamanho do Estado nos próximos anos só terá apoio de parte preponderante do campo progressista se for acompanhada de uma revisão nos benefícios dos mais ricos.