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Tokyo 1964, Tokyo 2021

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As memórias olímpicas de uma família
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A revolução feminina de Aída

Episódio 3

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 28 jul 2021, 21h05 - Publicado em 27 jul 2021, 11h00

Uma atleta brasileira chamou a atenção nos Jogos de Tóquio, em 1964 – e sua participação histórica ainda hoje tem imensa relevância. Ela é personagem do terceiro capítulo deste blog nascido de um par de cartas recebidas por Waldemar Zumbano, o Neno, meu avô, na Olimpíada de 1964, em Tóquio.

Eram apenas quatro letras (três vogais, uma consoante) e três números separados por uma vírgula. Aída, 1,74. Ou, como apareceu na carta enviada de São Paulo para Tóquio: (Aída, 1,74). Entre parênteses, como que para isolar aquela mulher de todo o resto, dando a ela um destaque que o tempo moldaria.

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, que era de 2020 e veio para 2021, pela primeira vez em 32 edições dos Jogos da Era Moderna o número de competidores mulheres será quase igual ao de homens – elas ocuparão 48,8% das disputas. Em 2016, no Rio, o índice era de 45,6%. Há oito anos, em Londres, foi de 44,2%. Ressalve-se que na naquela outra olimpíada do Japão, em 1964, o contingente feminino era de escassos 13,2% do total. A delegação brasileira tem no Oriente, agora, mais competidores do que competidoras, mas a diferença é pequena, de 53% para 47%.  É um extraordinário avanço, retrato de uma nova postura da sociedade – uma vitória, sem dúvida alguma, dos movimentos de igualdade de gênero deflagrados no final dos anos 1960 e que, desde então, nunca mais deixaram de ecoar.

É vitória, também, de algumas poucas mulheres que, sozinhas, desafiaram o atavismo e a desigualdade. Uma delas vive em um sobrado simples de Niterói, feito de escadas, corredores e quartos que remetem a um labirinto – ali vive Aída dos Santos, de 83 anos, uma senhora elegante, de sorriso aberto e memória intacta. Um diploma e uma boneca japonesa de pano, cuidadosamente protegida por uma embalagem de plástico, ambos empoeirados, revelam que aquela mulher ficou em quarto lugar na prova de salto em altura. Ela saltou 1m74 e por quatro centímetros não subiu ao pódio. Mas Aída foi a Tóquio com uma outra marca inigualável: ela era a única mulher entre os 68 atletas brasileiros convocados para o torneio. Sim – 67 homens e Aída. É bonito, para dizer o mínimo, que cinco décadas depois daquela primazia de Aída, solitária, o Brasil tenha chegado a Tóquio quase majoritariamente delas. Ressalve-se que, por 32 anos, até que Jacqueline e Sandra levassem o ouro no vôlei de praia, em 1996, o melhor resultado de uma brasileira em Jogos Olímpicos era o da atleta niteroiense.

Aida Santos na Vila Olímpica, em 1964 -
Aída dos Santos na Vila Olímpica, em 1964 (//Arquivo pessoal)
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“Me emociono ao ver tantas mulheres agora”, diz Aída. Ela se recorda de, em 1964, ter passado duas semanas chorando na Vila Olímpica, presa entre as dificuldades do idioma e o machismo. Dormiu sozinha no alojamento e, para movimentar-se, pedia socorro de atletas de língua espanhola. Tinha alguma tranquilidade apenas no passeios de bicicleta – vez ou outra, esbarrava no Neno e nas cartas que ele levava na mão. Não levou treinador e tampouco calçados adequados – salvou-a o representante de uma marca de equipamento esportivo, que na véspera da competição conseguiu um tênis com pregos no calcanhar, como pede a modalidade do salto em altura. As dificuldades daqueles dias, relembra Aída, não eram muito distantes dos obstáculos antes de começar a vencer no esporte. “Lembro-me que, na última eliminatória antes da olimpíada, em 1964, minha mãe só me deixou ir até o Maracanã, de carona, numa bicicleta, depois de carregar água nos baldes, lavar roupa e encerar o chão”, diz. “Meu pai chegou a me bater, porque saía escondida para competir”. O pai era pedreiro. A mãe, lavadeira. Ela gostava mesmo era de voleibol – e não por acaso sua filha, Valeska, foi medalha de ouro em 2008 –, mas ouviu inúmeras vezes a frase que a empurraria para as pistas de atletismo. “Vôlei não é coisa de preto”. Recentemente, Ainda se tornou campeã máster de vôlei, cujas medalhas emolduram o atulhado quarto de recordações esportivas.

Ao voltar para os alojamentos, em Tóquio, depois do quarto lugar, Aída foi recepcionada por alguns colegas, que se mostraram felizes com a conquista. “Mas não vi nenhum de vocês na arquibancada”, disse, a um só tempo irritada e altiva. No desembarque no Rio de Janeiro, quiseram instalá-la em um carro de bombeiros, em desfile aberto até Niterói. Ela disse não e pegou um táxi. Ainda dentro do avião, ofereceram-lhe um ramalhete de flores. “Agora? Por que vocês não me apoiaram antes?”.

A “olimpíada das mulheres” – como estavam sendo chamados os Jogos de Tóquio, antes de virarem os Jogos da Pandemia –, além de ser resultado de décadas de empenho e muita briga, carrega uma outra mensagem, cuidadosamente trabalhada pelos organizadores: o Japão foi sempre um país de poucas oportunidades para as mulheres, tradicionalmente afastadas do mercado de trabalho, embora as estatísticas tenham melhorado nos últimos anos. Em 1970, apenas 46% delas, entre 15 e 64 anos, trabalhavam. Hoje são 64%, índice similar ao dos Estados Unidos (convém ressaltar que a ocupação feminina, no Brasil, atualmente está no mesmo patamar do Japão há cinquenta anos). Políticas públicas e das empresas privadas têm diminuído o fosso entre mulheres e homens – e a Olimpíada precisaria retratar esse movimento. Ainda assim, no cotidiano, em muitas situações continua a valer a frase de Tiger Tanaka, o chefe do serviço secreto japonês de um dos capítulos da franquia de James Bond, Com 007 Só se Vive Duas Vezes, de 1967, com Sean Connery – filme que, supostamente, serviria para mostrar um Japão modernizado, no pós-guerra. No inglês, a frase continha um trocadilho irônico com os prazeres sexuais masculinos, indicando que os homens chegam antes ao clímax, mas em português fica muito claro também: “No Japão, os homens sempre vêm primeiro”. Para tentar mostrar que não é mais assim (mas é), os japoneses, de mãos dadas com o Comitê Olímpico Internacional, trataram de abrir mais espaço para as mulheres – situação que torna a trajetória desafiadora de Aída dos Santos ainda mais emocionante. Ela quebrou os parênteses em torno de seu nome, rompeu as barreiras, virou símbolo indelével – e a prata da skatista Rayssa Leal é um bonito aceno ao que Aída quase conseguiu. Ela é marca de uma imensa transformação promovida pela olimpíada de 1964. Mas houve outras, e uma delas ecoa ainda hoje, como se verá na próxima publicação, dentro de três dias.

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Aida Santos durante o desfile inaugural com a delegação brasileira -
O desfile da delegação brasileira em 1964: ela era a única mulher com 67 homens (//Arquivo pessoal)

 

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