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Tokyo 1964, Tokyo 2021

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
As memórias olímpicas de uma família
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E o Brasil quase não foi para Tóquio em 1964

Episódio 1

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 jul 2021, 08h51 - Publicado em 21 jul 2021, 08h30
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  • Este blog nasceu de um par de correspondências recebidas em Tóquio por meu avô, Waldemar Zumbano, o Neno, treinador da equipe brasileira de boxe na Olimpíada de 1964. As cartas foram enviadas pela família, de São Paulo. Revelam os humores, o cotidiano e a política daquele tempo no Japão e no Brasil – e iluminam as transformações do mundo em mais de cinco décadas.  

    Era improvável que o par de envelopes contendo folhas de caderno finíssimas, em correspondências escritas a mão, sobrevivesse incólume depois de 57 anos. Mas está aí, ligeiramente amarelado, quase nada, tingido em tímido sépia, para contar uma história olímpica. Os selos são quatro de 100 cruzeiros cada um, com o rosto do presidente da República Federal da Alemanha, Heinrich Lübke, que em maio de 1964 havia se encontrado com o general Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura. Há, nos cantos, outro selo, de 5 cruzeiros, com a efígie de Ruy Barbosa. As duas cartas, despachadas pelos Correios em São Paulo com diferença de apenas três dias, foram encontrar Waldemar Zumbano, o Neno, o Nê, meu avô materno, em 20 e 23 de outubro de 1964, quarta e sexta-feira, no prédio 384 da Vila Olímpica de Yoyogi, na região norte de Tóquio. O imenso parque, hoje transformado em bairro residencial, servira de acampamento do Exército Imperial Japonês durante a II Guerra e, depois da rendição, fora transformado em abrigo dos soldados americanos e seus parentes durante a ocupação promovida pelas tropas do general Douglas MacArthur, que duraria até 1952. Vivia-se, no início dos anos 1960, sem a pretensão de comparar o incomparável, um tempo como o de hoje, em que o mundo, especialmente o Japão, ensaiava sair do desastre para algo novo, como quem se vacina para voltar a respirar. Havia apenas dezenove anos, o país insular saíra despedaçado da contundente derrota do Eixo, fora vítima das infames bombas atômicas despejadas sobre Nagasaki e Hiroshima e buscava uma saída. A Olimpíada era uma oportunidade de renascimento – a segunda chance, porque a primeira, em 1940, fora engavetada pelo Comitê Olímpico Internacional. Naquele ano, a guerra contra os Aliados e o conflito com a China puseram tudo a perder. Pôsteres de 1940, que já tinham sido impressos e circulavam em bares, restaurantes e hotéis, de desenho ufanista, se transformaram em relíquia do que não houve. E então veio 1964. “Um novo dia está bem próximo, mas o dia anterior ainda arrasta suas caudas pesadas. Assim como as águas do mar e do rio se enfrentam bravamente na foz, o novo e o velho tempo se chocam e se misturam”, escreveu Haruki Murakami em Após o Anoitecer, de 2004.

    Meu avô, o Neno, para quem um novo dia estava sempre próximo, apesar do encontro das águas agitadas do mar e do rio, era o treinador da equipe de boxe do Brasil na Olimpíada de Tóquio em 1964. A miopia severa, que não o impediu de disputar mais de 250 lutas na juventude e enxergar o mundo com os olhos miúdos sempre sensíveis aos mais fracos, autoriza a imaginar como as mãos delicadas – sim, elas não pareciam de um pugilista – abriram os envelopes, levando os papéis para muito perto do rosto. Punha e tirava os óculos de lentes grossas, tentando achar um ponto de foco mais preciso. Sei disso porque, até os meus 41 anos, eu mesmo o vi ler desse jeito. Não é difícil que tenha chorado, sem que ninguém percebesse, é claro, com saudade de casa, dos remetentes, que se digladiavam pelo pouco espaço no papel – a mulher, a filha e o genro. Minha avó, minha mãe e meu pai. Escondia o choro porque gente de boxe não chora. O boxe, se não a única maneira civilizada de liberar a violência inata do homem, com certeza é a forma esportiva mais pura de atender ao instinto de domínio sobre o outro.

    O Neno, de óculos, ao centro, no bandejão da Vila Olímpica de Roma, em 1960 
    O Neno, de óculos, ao centro, no bandejão da Vila Olímpica de Roma, em 1960 (./Arquivo pessoal)

    “Querido papai, chegou sua segunda carta (e acabou a tinta, não acho outra caneta)…”, começa a missiva de 15 de outubro, com a letra da minha mãe, para prosseguir a lápis. Trata de questões domésticas – os netos, entre eles eu, ainda bebês. Passeia pelo cotidiano no Brasil. Está repleta de perguntas sobre o Japão, tão distante, tão enigmático, e os Jogos. Oferece conselhos, vai de platitudes a questões universais. O que este blog pretende, de agora até o início de agosto, é trilhar as entrelinhas dessas duas singelas cartas, e a partir delas entender um pouco do  Japão e do Brasil, de 1964 e de hoje. Das respostas do Neno, não há notícia, se perderam. A correspondência que o tempo não apagou só virou correspondência e foi recebida do outro lado do mundo graças à coragem de um dirigente esportivo – o major Sylvio de Magalhães Padilha, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro de 1963 a 1990. Quem conta essa história é o advogado Alberto Murray Neto, neto de Padilha: “Em 1964, a nossa delegação olímpica, sob o comando do meu avô, vai embarcar para os Jogos Olímpicos de Tóquio. Estão no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A certa altura um oficialzinho de plantão dá voz de prisão a Waldemar Zumbano, e o impede de viajar. A razão: Zumbano é comunista. Deve ser detido. Meu avô foi ao oficial de plantão e disse: ‘Aqui não se trata de uma questão de patente militar, porque, se assim fosse, a minha é superior à sua e eu poderia dar a ordem de soltura. A questão aqui é diferente: esta é uma delegação olímpica, que está sob o meu comando. Sou o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro e determino que o professor Zumbano seja imediatamente solto e viaje conosco. Se o senhor não fizer isso, saio daqui e mando toda a delegação de volta para casa. Aviso que o Brasil não vai mais à Olimpíada do Japão. E vou contar que o culpado é o senhor. Ou o professor Zumbano viaja, ou o Brasil não irá para a Olimpíada por sua culpa’”. 

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    A delegação embarcou com o Neno. Ele e Padilha viraram amigos de infância. Sempre que um deles viajava, e as viagens eram frequentes, tratava de trazer algum presente para o companheiro. O tenso embarque só seria revelado para a família alguns dias depois, em razão das dificuldades de comunicação. Mas havia sempre preocupação com o Neno, militante do Partido Comunista, que tinha sido preso logo depois do golpe de 31 de março e enquadrado no AI-1. Há, numa das cartas, uma citação cifrada ao episódio. “(…) O que deve interessar a você é que o dia de um mês depois do aniversário da mamãe já passou e com você ninguém mexeu. Entendeu, né?”, escreveu a filha ao pai. Sim, o Neno entenderia. A mensagem cifrada será tema do segundo capítulo dessa aventura epistolar, no próximo sábado, 24.

    Sylvio Padilha, presidente de COB, desembarcando no Aeroporto -
    Sylvio de Magalhães Padilha: presidente do COB de 1963 a 1990 (Renato dos Anjos/VEJA)

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