Depois de Kamala Harris entrar em cena como a nova aspirante democrata à Casa Branca, substituindo um Joe Biden insosso e, para a maioria dos eleitores, velho demais, a palavra que a mídia americana mais usou para definir o momento foi “eletrizante”. Diante de seu grande sorriso aberto, vieram uma cascata de apoios de celebridades, memes elogiosos, e 361 milhões de dólares em doações para o seu comitê em dois meses, o triplo do rival, Donald Trump, no período.
Uma das únicas coisas que parecem ter restado de sua era inexpressiva e apagada como vice-presidente foi seu guarda-roupa, que continua vomitando uma sucessão de terninhos – em tons de preto, azul escuro, bordô e bege, com um toque ocasional de rosa salmão ou azul bebê –, sempre com seus saltos Manolo Blahnik, de 7 centímetros.
Sua decisão de manter os ternos, porém, não é apenas um padrão. É uma tática.
Furar a “barreira da imaginação”
Numa eleição em que quase tudo sobre Kamala é pioneiro — ela pode ser a primeira mulher na Casa Branca, a primeira mulher negra, a primeira filha de imigrantes —, se preocupar com a forma como os americanos a enxergam não é mero capricho. Roupas são uma espécie de para-raios para os sentimentos incipientes que o eleitorado nutre, bons e ruins, e especialmente sobre uma mulher.
A questão é que, quando alguém imagina um presidente, o que vem à cabeça com mais frequência é algo que já viu no passado: um homem, branco, heterossexual. A Barbara Lee Family Foundation, uma organização sem fins lucrativos apartidária focada em mulheres na política, batizou esse fator de “barreira da imaginação”.
De olho nisso, Kamala parece ter rejeitado o antigo uniforme político feminino popularizado por nomes como Hillary Clinton e Angela Merkel – um terno com corte ainda masculino, mas em cores gritantes, uma espécie de tentativa para diminuir a divisão masculino-feminino. Nas mãos de Leslie Fremar, uma estilista poderosa de Hollywood que veste atrizes como Salma Hayek e Charlize Theron, ela optou pela consistência, de forma a não provocar nenhuma dissonância em sua imagem, mantendo seu estilo e tentando furar a “barreira da imaginação”.
Equilíbrio e poder
A ideia é parecer uma mulher poderosa e “no controle”, mas não ameaçadora. A jaqueta abotoada, mas só um botão. Salto alto, mas não tão alto. Estar na moda, sem se meter a fashionista. Um mergulho ocasional em roupas casuais – ela recentemente posou para a Vogue de jeans e All Stars – ajuda a cultivar a imagem de “gente como a gente”. Por outro lado, um toque especial em eventos black-tie (no final de abril, Kamala usou um vestido justo de gola alta, coberto de lantejoulas, criado pelo francês Hedi Slimane, rei da moda descolada que inventou o jeans skinny) permite que ela se destaque enquanto mantém sua paleta de cores sóbrias e linhas retas.
De vez em quando suas roupas carregam um simbolismo extra. Na posse de Biden, ela desfilou três designers negros diferentes: Kerby Jean-Raymond, Christopher John Rogers e Sergio Hudson. Já quando seu colega de chapa declarou vitória na eleição de 2020, ela usou um terno branco da Carolina Herrera, em homenagem às sufragistas que usaram a cor como bandeira na luta pelo voto feminino há mais de 100 anos. Na Convenção Nacional Democrata, quando sua candidatura foi oficializada, vestiu um terninho bege – aceno a Barack Obama, que usou conjunto da mesma cor numa coletiva de imprensa em 2014 sobre a resposta americana ao Estado Islâmico, criticado por não ser “próprio” para discutir um assunto tão sério.
Direto ao ponto
Mas, tanto quanto possível, ao vestir a mesma coisa de sempre, Kamala tirou a moda da mesa como um ponto de discussão, para melhor se concentrar em seus pontos de discussão reais. Está fresco na memória o escrutínio que recaiu sobre Hillary quando ela usou um penteado diferente, que rendeu análises sobre o que a xuxinha que ela usou para amarrar o rabo de cavalo significava.
Ao fim e ao cabo, Kamala sabe o que funciona para ela, e é exatamente isso que está em seu guarda-roupa. Ao entender seu estilo pessoal – e traduzir isso para as demandas de profissionalismo e publicidade – ela pode ir direto ao ponto. Seu uniforme é estar vestida para vencer.