Desde que soube que ganhara o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se a primeira mulher de seu país a alcançar tal honraria, a francesa Annie Ernaux, 82, passou a ser requisitada em diferentes partes do mundo. Na recente vinda à Flip, no final de novembro, ela relatou como soube que foi laureada – pelo rádio, em casa, na companhia de seus dois gatos. Annie só não faz ideia do que fazer com o dinheiro (10 milhões de coroas suecas, ou cerca de 4,5 milhões de reais). Ela é autora de O acontecimento, em que narra o aborto que fez nos anos 1960, e O jovem, sobre um romance com um rapaz 30 anos mais jovem, entre outros clássicos que misturam relatos pessoais e ficção numa forma só sua de narrar contextos históricos. Na entrega do prêmio no próximo dia 10, em Estocolmo, ela vai levar seu fiel escudeiro, o filho David Ernaux-Briot. Confira o bate-papo com a escritora francesa.
Poderia descrever a cena de como descobriu ter ganhado o prêmio Nobel? É um momento inesquecível! Meu telefone fixo não parava de tocar mais cedo, era um número da Suécia, pensei que se tratava de um trote e não atendi. Soube da notícia às 13 horas, estava na minha casa, na cozinha, quando liguei o rádio. Foi um sentimento de ter saído de mim, do meu corpo, era um sentimento de irrealidade.
Já tem ideia do que vai fazer com o prêmio? Honestamente não sei ainda, nunca tive tanto dinheiro. É como ganhar na loteria. Muda o olhar sobre as coisas. Também dá uma espécie de culpa, pensar que é uma soma tão alta, e há uma questão entre o que se ganha e o seu trabalho. E eu lembrei do meu primeiro trabalho, de pensar qual seria a recompensa. A questão é justamente isso, de recompensa, do valor justo ou não, com relação ao trabalho que fazemos.
Como a senhora se sente sendo a primeira mulher de seu país a ganhar o prêmio Nobel de literatura? Foi uma surpresa, sem dúvida. Eu nunca pensei em obter esse prêmio, para mim bastava escrever, publicar e ser lida, nesta ordem. O fato de ser a primeira francesa é o que mais me toca. Porque na França, em particular, a literatura é considerada uma coisa masculina.
Seus livros provocam muita adesão, principalmente de mulheres. Quando escreve, a senhora pensa nestas leitoras? Talvez eu decepcione você com minha resposta, mas quando escrevo não penso em ninguém. Escrevo porque é algo que vem de mim, uma procura a partir de sensações, de fatos, de vivências. Vou até o fundo das coisas. Não escrevo para as mulheres, apenas desenvolvo minha escrita.
Seus temas são sempre fortes. Como é falar sobre a própria experiência, se colocando no centro do debate? É uma disposição natural que tenho, de ver à distância o que vivi. Como se fosse outra mulher, que tivesse vivido isso, outra garota. E ser, ao mesmo tempo, alguma coisa do passado e do presente.
Nesse processo, o que descobriu sobre si mesma? O objetivo quando escrevo não é descobrir algo sobre mim, mas uma verdade mais ampla. Não é algo sobre que eu possa dizer: “Ah, descobri isso de mim”. Escrever é um processo de criação de coisas, avançar sem saber de onde vem e para onde vai. Eu me aplico nisso, não busco algo em mim.
Acredita que somente uma mulher poderia escrever como a senhora? Não, outros podem muito bem escrever os mesmos temas, mas não como eu, porque não é a mesma vida. Parto das minhas lembranças, que devem estar ligadas à memória coletiva, não se trata da memória individual. Sempre busco a cor da memória coletiva, algum vínculo.
Como melhor se define: Suas obras são de ficção ou não-ficção? As coisas são claras para mim, do ponto de vista do conteúdo e do meu trabalho. Eu estou na não-ficção. Na minha escrita procuro a forma que dará mais verdade, porque a verdade é ligada à forma.
Sua escrita sobre o aborto é muito atual. Pensa nisso? É muito difícil decidir o que vamos escrever, preciso sentir a urgência de escrever. Vou dar um exemplo: Quando decidi escrever sobre o que se pode chamar de uma relação sexual forçada, que tive aos 18 anos. Muito tempo depois, fui solicitada por fatos que não eram presentes em mim, nos anos 90, como a questão com o ministro francês Dominique Strauss-Kahn, que estuprou uma camareira num hotel em Nova York. Isso me mobilizou a pensar no que já tinha escrito.
Em que momento se sentiu plenamente escritora? Não é nem com o primeiro livro publicado que me senti escritora, no fundo nunca me senti escritora. Mas bom, estou brincando com isso… No fundo, eu sou só isso. É uma questão de vida e de morte, mas me parece que o que mudou, me fez sentir de verdade, foi quando eu escrevi O Lugar, sobre o meu pai.
Como foi ver a emoção de suas leitoras em Paraty? Uma grande emoção, porque percebo que o que escrevo tem um peso. Escrever é uma grande responsabilidade.
https://www.youtube.com/watch?v=qlPt8Xdg0SY&t=81s