Coronel da artilharia da reserva e advogado, Rubens Pierrotti acaba de lançar o livro Diários da Caserna – Dossiê Smart: a história que o exército quer riscar. A editora tinha colocado aquele texto padrão: “Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real será mera coincidência”. Rubens conta que pediu para completar: “… ou terá servido tão somente como fonte de inspiração para a obra”. O livro traz como tema os meandros de um esquema de corrupção na construção de um simulador de apoio de fogo de artilharia, denominado Smart, e de outros crimes reais envolvendo oficiais de alta patente do Exército Brasileiro. Rubens, que passou para a reserva como coronel de artilharia em 2016, após comandar o 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, sediado no Rio, concedeu a seguinte entrevista à coluna GENTE.
O senhor diz que Diários da Caserna é um exercício de ficção literária. Quanto tempo levou para ficar pronto? Tive que conciliar a escrita do livro com a atividade como advogado. Levei dois anos para escrever a primeira versão. Quando terminei, me dei conta de que o livro tinha mais de 700 páginas. Lembrei da frase do Carlos Drummond de Andrade: “escrever é a arte de cortar palavras”. Mas não é tão simples. O desafio maior foi enxugar o livro sem perder conteúdo. Levei mais um ano nessa tarefa.
O que é de fato realidade no livro? Vou citar outro escritor que admiro: Franz Kafka. Ele dizia: “a literatura é sempre uma expedição à verdade”. A frase cai muito bem para Diários da Caserna. O livro caminha sobre um tênue limiar entre ficção e realidade. A história é inspirada na minha experiência profissional como oficial superior do Exército, quando fui designado para supervisionar o desenvolvimento do simulador de treinamento militar por uma empresa estrangeira. O projeto foi envolvido em muita polêmica, porque a empresa não conseguia entregar o produto como havia sido contratado.
Ainda há uma ideia no país de que as Forças Armadas não são passíveis de corrupção. O que pensa a respeito? O próprio Superior Tribunal Militar pode responder. Experimente colocar a palavra “corrupção” como parâmetro de busca de jurisprudência do STM. Encontrará centenas de casos. Dizer que as Forças Armadas, que os militares que as integram, não são passíveis de corrupção é mais um mito criado. O serviço de Inteligência do Exército, muitas vezes, monitora atividades suspeitas em parceria com outros órgãos, como Polícia Federal ou Ministério Público. Alguns setores do Exército são recorrentes em denúncias, como o serviço de fiscalização de produtos controlados (SFPC), que controla armas, munições e emite certificados de CACs para colecionadores de armas, atiradores desportivos e caçadores; a seção de inativos e pensionistas (SIP); a seção de aquisições, licitações e contratos (SALC) etc.
O senhor é militar da reserva e advogado. Como as duas atividades se interligam no dia a dia? O Direito, que cursei anos após a AMAN, quando estava no posto de capitão e major, me ajudou muito no tempo em que estive no Exército. Cheguei a desempenhar funções de chefe da assessoria jurídica da Brigada de Infantaria Paraquedista e também da Academia Militar das Agulhas Negras. Mas a recíproca não é verdadeira. Os conhecimentos que adquiri e as atividades que desenvolvi no Exército não me ajudaram em nada na profissão como advogado.
O senhor presenciou corrupção dentro do Exército? Como major, fui chefe da seção de inteligência da 1ª Região Militar, que engloba os estados do RJ e ES. Pela função que exerci, acompanhei investigações. Por sigilo profissional, sou impedido de comentar. Mas gostaria de aproveitar a sua pergunta para chamar a atenção para uma nova visão, sobre uma corrupção que escapa aos olhos dos órgãos de investigação. “Mala de dinheiro”, “dinheiro na cueca”, “um paga, outro recebe”, “empresas de fachada”… são as formas clássicas de corrupção. Mas existe a corrupção silenciosa, onde quem corrompe não precisa desembolsar um tostão. Uma leitora do livro Diários da Caserna chamou de corrupção legal.
O que seria? Legal, não porque seja permitida, óbvio que não é, mas porque está estampada no Diário Oficial. Vou dar um exemplo, por hipótese. Imaginemos que um general quer liberar o pagamento de um produto fabricado por uma empresa contratada, mas é reprovado nos testes por determinada equipe de militares. O general, então, afasta quem reprovou o produto e coloca em seus lugares coronéis que se dispõem a assinar o recebimento do produto. Pouco tempo depois, se lê, no Diário Oficial, que aquele coronel foi promovido a general. Será que a promoção teve alguma coisa a ver com a assinatura anterior? Fica difícil investigar, ainda mais sabendo que o critério de promoção ao generalato no Exército não é por merecimento, mas por escolha pessoal, ou seja, não precisa ser justificado.
Como resolver a questão da corrupção entre militares? Na minha opinião, é preciso criar uma corregedoria, chefiada por um general, diretamente subordinado ao Comandante do Exército, com disposição para investigar os crimes, não só aqueles cometidos por militares de baixa patente, mas também os perpetrados pelos que atingiram patentes mais altas.
Como tem sido a receptividade do livro junto aos colegas militares? Um elogio comum é sobre a coragem de escrevê-lo. O tema é espinhoso, oferece uma radiografia do Exército, as coisas que precisam ser consertadas. A história, que se passa na última década, dialoga com aspectos da Ditadura Militar, com a volta dos militares ao poder pelo voto, até os infames episódios da tentativa de golpe de 08 de janeiro de 2023. Os elogios dos militares, compreensivelmente, têm sido mais tímidos, feitos de forma reservada. Que tal irmos além da resposta pronta que o CComSEx (Centro de Comunicação Social do Exército) apresenta sempre que algum militar é flagrado em conduta reprovável: “O Exército instaurou uma investigação, que está em curso. Ao final, se o envolvimento dos militares for comprovado, eles sofrerão as sanções devidas. O Exército Brasileiro reitera que não compactua com desvios de conduta”. Estamos vendo toda exposição de militares que ocuparam cargos há pouco tempo no governo do ex-presidente, e, é claro, que isso envergonha os bons militares. Mas, insisto, o Exército, as Forças Armadas não vão sair dessa tentando riscar histórias, sem uma disposição real e sincera de ouvir as críticas e reformar a instituição, começando pelo currículo das academias militares.