‘Época boa’, diz escritor de ‘Gastura’ sobre a ditadura militar
Em conversa com a coluna GENTE, Fernando Machado explica processos de perdas e aprendizados que juntou em novo livro

Engenheiro civil de formação, Fernando Machado, 75 anos, é daqueles que defende não ter idade para ser escritor. Em seu novo livro Gastura (ed. Labrador), Fernando junta suas memórias e faz uma trajetória entre os principais acontecimentos de sua vida intercalado com fatos históricos – como a chegada da televisão no Brasil, em 1950; a Guerra Fria e o medo do bug do Milênio, na virada dos anos 2000. Em entrevista à coluna GENTE, o autor desabafa sobre seus problemas com o alcoolismo e recorda da época de faculdade durante a ditadura brasileira – momento que, aliás, diz lhe trazer boa memória.
Por que decidiu aplicar a palavra “gastura” para a sua vida? Gastura é um termo que aprendi com alguém há uns 50 anos em Salvador (BA). Sou engenheiro e tinha uma obra lá em que cuidava e dentro havia um restaurante dos funcionários. Dentre os 500 funcionários, tinha uma mocinha num cantinho bem triste. Passei e perguntei o que ela tinha. Ela passou a mão na barriga e falou: ‘Acho que é uma gastura’. Essa conversa ficou no meu cérebro durante 50 anos.
E por que nomear o livro de Gastura? Em 2018 comecei um tratamento psicológico em Florianópolis (SC). Depois de todas as sessões, chegava em casa e fazia uma anotação aconselhada pela própria terapeuta. Comecei a pôr aqueles papeizinhos numa gaveta, e quando chegou em dezoito meses de terapia tinha um emaranhado de coisas que aconteceram comigo, que eu soube que aconteceram no Brasil e no resto do mundo. Quando resolvi fazer o livro tinha que dar um nome e dei Gastura.
Escrever esse livro foi uma forma de se libertar de algum mal-estar? Escrever na minha vida começou com uma coisa indefinida, não sabia o que estava fazendo. O livro é a linha de tempo desde que nasci, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, até o bug do milênio. Escrevi todos os fatos que de alguma forma me tocaram. Foi um renascimento, na realidade. Comecei a escrever de uma maneira terapêutica e acabei escritor.
O senhor estava na faculdade durante o golpe militar. O que traz daquele período? Essa época, para mim, foi uma das mais produtivas para toda uma geração. Na faculdade tinha aviso para procurar emprego, todo mundo que estava se formando tinha emprego. O jornal do Estado de São Paulo vinha em caixa, porque a seção de procura de emprego era vasta.
Fazia parte de alguma militância? Estudava na Mackenzie. Do outro lado da rua fica a USP, que tem tendência de esquerda. Namorava uma garota de lá, mas minha turma aqui da Mackenzie era de direita, ali era esquerda. Eu frequentava o centro social da USP e via a turma falando, revoltada… Teve um grupo que ficou mais radical. Fiquei com medo dessa namorada, porque ela começou a se radicalizar e nos separamos por motivos políticos.
Como foi essa época? Foi uma época boa. Houve essas coisas todas (de censura e perseguição), lógico que houve, mas é uma segunda parte. Assisti agora de novo ao O Que É Isso, Companheiro? com a Fernanda Torres, que fala sobre o sequestro do embaixador americano. Lembro disso, tinha essas pessoas, mas era uma minoria.
Ainda Estou Aqui retrata a violência durante a ditadura militar. O que pensa sobre mostrar esse lado da História? A ditadura militar é um negócio tão antigo, tão antigo… Já aconteceu tanta coisa. Agora, tudo que aconteceu na ditadura acaba virando história, é tanto tempo que acaba virando história. Isso é passado. Depois da Revolução Francesa, vieram essas revoluções todas, quando teve a Revolução da Ditadura no Brasil, tinha na Argentina e no Chile. Todos com as suas características próprias, não dá para julgar isso.
O senhor relata o sofrimento que passou depois da perda de seus dois filhos. Foi o fundo do poço? Foi uma espécie de fundo do poço. Em 1968 tive o primeiro filho, muito emocionado. Depois tive o segundo, faleceu no hospital de membrana hialina, uma má formação do pulmão. O terceiro, precoce também, perdi. No quarto, minha mulher já queria desesperadamente recuperar o perdido. Tive mais dois. Mas cinco partos seguidos acabaram com o meu casamento. Em cinco anos, meu casamento era com outra pessoa, a perda de um filho é um trauma violento que mexe com tudo.
Logo depois o senhor começou uma batalha contra o alcoolismo. Como foi? O alcoolismo é uma doença que ataca devagarzinho. Você vai num bar, todo mundo conversando, você bebendo. Todo mundo vai embora e você fica sozinho no bar. Tentei tomar só vinho, tentei tomar só cerveja, tentei tomar só isso, só aquilo, mas nada deu certo. Aí começaram os acidentes de automóvel, as besteiras em bares, brigas, e aí falei: ‘alguma coisa está errada comigo’. Foi aí que fui visitar um grupo chamado Grupo Jardins. Fui lá, vi uma reunião lá, várias pessoas, trinta pessoas fumando e achei muito esquisito. Mas me mantive lá.
Como foi o processo do tratamento? Aprendi lá que não dá para parar de beber, bebendo. Não dá para escrever se você não começa a escrever. Se você não estiver escrevendo, não vai aprender nada. Se não faz nada, só fica no planejamento, não vai escrever. Em 1992 decidi que nunca mais iria beber. Estou sóbrio desde então, não como nem bombom com licor. Foi fácil? Não, foi muito difícil, mas foi uma persistência incrível.
O senhor fala muito da sua experiência como pai. Tem arrependimento? Não tenho arrependimento porque, sabe, bebi bastante, fiz besteira e parei de beber. Quando parei de beber, meu poder de argumentação aumentou. Uma vez um filho respondeu: ‘Não vou falar nada, porque você conseguiu parar de beber’. Conseguir parar de beber é um exemplo para os outros. Nunca fui em reunião de pais, detestava esse negócio, já era muito chato. Mas eu pegava o cara e ensinava alguma coisa, socorria, acompanhava a vida dele, dava uma chamada na hora necessária… Mas tinha pânico de reuniões, de elevador, de ir num teatro e sentar no meio da multidão, sempre escolhi o pior lugar que era perto da saída. São defeitos psicológicos meus. Me sinto mal com aquelas conversas paralelas, não é um assunto privilegiado para mim. Eu não vou, me sinto mal.