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Matheus Nachtergaele: ‘Já fiz várias cenas alcoolizado’

Ator fala a VEJA sobre desafio de interpretar Norberto de 'Renascer' e explica por que ficou um longo período longe das novelas

Por Valmir Moratelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2024, 12h46 - Publicado em 2 abr 2024, 07h00

Matheus Nachtergaele, 56 anos, é dos atores brasileiros com maior gama de personagens diferentes em sua vasta carreira. Vai da ingenuidade quase infantil de João Grilo, em O Auto da Compadecida, que ganha em breve uma releitura modernizada, ao doentio Everardo de Baixio das Bestas, clássico do cinema pernambucano de Claudio Assis. Dez anos depois, está de volta às novelas, como o dono de bar Norberto, em Renascer, da TV Globo. Em entrevista à coluna, realizada em dois longos momentos distintos, Matheus filosofa sobre a vida, disserta sobre sua potente arte e mostra por que, além de tudo, é um pensador inquieto.

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O momento em que Matheus Nachtergaele quebra a quarta parede de ‘Renascer’

Por que tanto tempo longe das novelas? Faço muito teatro, cinema sem parar, e muita série. Nos últimos anos foram Filhos da Pátria, Todas as Mulheres do Mundo, três temporadas do Cine Hollywood. É bastante trabalho, quase ocupa dez anos de espaço. A Globo já sabia que prefiro séries. Agora, nesse momento, achei um chamado bonito de Renascer, por isso aceitei.

Sentiu alguma diferença ao retornas ao set de novelas? Por estranho que pareça, achei mais leve do que o ritmo das séries. Cine Hollywood era feito com uma câmera só, extremamente bem fotografado, muita coreografia de comédia, era intenso, de segunda a sábado. É claro que o protagonista de uma novela não vai dizer a mesma coisa que eu, mas estou sentindo o clima não tão agitado. Então digo que estou descansando ao carregar pedras. Estou na esperança de voltar a fazer análise, de malhar um pouquinho, de voltar a fazer sexo, coisas que assim, nos últimos anos não estavam rolando (risos).

Férias nem pensar? Prefiro viver assim do que viver a vida cotidiana, férias para mim parecem pesadelo. Quinze dias numa praia gostosa, já estou bem satisfeito. Prefiro estar em cena.

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Como transitar entre “oito e o oitenta”, com personagens ora infantis, ora diabólicos? Nós, atores, estamos na vida tanto quanto qualquer um, mas com a vocação ou a necessidade de tentar exprimir o que percebemos. Não só aquilo que vimos nas pessoas, belezas, ternuras e violências, mas também aquilo que percebemos dentro da gente. Desde criança você aprende a ser angelical, quando precisa. Doçura é encantamento para receber algo, inclusive amor. Quanto a fúrias, às vezes assassinas, reprimimos para estar em sociedade. Essas coisas estão na mesa como lápis de cores, tintas e aquarelas de um ator. Nós temos algo de psicótico.

Como enxerga seu oficio para a utilidade pública? Tem uma função concreta. É a serventia de um pastor nos tempos idos, de uma prostituta em lugares reprimidos, o Judas Iscariotes e o cordeiro oferecido em sacrifício. É aquele que sai da vida comum e se coloca em oferenda. É claro que ele deseja os incensos, as flores que vão junto com a oferenda, mas será queimado pelo fogo do sacrifício e vai também sentir essa dor. Ele será incensado e massacrado no mesmo instante. A gente é objeto de utilidade pública fundamental à saúde da sociedade.

Te pergunto isso porque o debate sobre a arte foi muito cruel nos últimos anos. Sim! É importante que se perceba sempre o que é arte. Confundiu-se muito isso nos últimos tempos, muita gente acha que é ator mesmo não sendo. O ator, quando é um ator, é uma coisa bonita, está em artesania constante.

Quando tem que lidar com quem se acha ator, como reage? Não penso sobre isso, sou muito fascinado pelo que o outro tem e eu não tenho. Sempre fico embasbacado com alguém atuando, dos mais aos menos vocacionados. Fico encantado com atores que não sabem o que estão fazendo e comovido com os que têm técnicas, que trabalham de um jeito que eu seria incapaz de trabalhar. Não sou crítico com meus colegas, não sou bravo.

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Mas não há uma desvalorização do “ser ator”, que prioriza o lado glamoroso? Esqueceu-se um pouco o que é um ator e desvalorizou-se, por exemplo, o período de formação. O ator é um artista grande, tanto quanto um escritor, pintor, compositor, diretor. Fiz a trajetória toda, li os livros de (Constantin) Stanislavski, fui para escola de arte dramática, pastei bastante na mão do Antunes Filho. Criei meu próprio grupo, Teatro da Vertigem, conseguindo na garra, um espaço dentro da cultura brasileira.

Mantém-se crítico consigo próprio? Sempre acho que o outro está melhor que eu em cena, sempre. Do lado competitivo e também do lado humilhante. ‘Meu Deus, fiquei aquém do esperado’. Porque o que passou já não importa, o que importa é a próxima peça, o próximo espetáculo. Não se pendura na parede a obra de um ator, ela acontece em vida. E estamos com o rosto dado a tapa, literalmente, todo santo dia.

Não há jogo ganho? Nunca. Você pode ter feito um filme maravilhoso, ganhar todos os prêmios e virar ícone por meses no coração da população. Mas aí no próximo trabalho todo mundo diz que você é uma fraude, que enlouqueceu para sempre. E pode ter que carregar isso durante alguns anos. Não é como um livro que você fala: ‘agora vou parar de escrever’.

Já aconteceu de ser elogiado num dia e criticado no outro? Lembro de um cara que ficou muito bravo comigo e escreveu na internet que tinha me encontrado no aeroporto e pediu uma selfie. Depois disse que fui extremamente grosseiro. Tive que responder. ‘Meu pai tinha acabado de morrer, estava indo enterrá-lo’. Eu estava num lugar comum como um saguão de aeroporto, porque era obrigado a estar ali. Não gostaria de estar ali. ‘Adoraria ter tido um sorriso bonito para você, mas eu não tinha’.

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Já atuou alcoolizado? Não fiz vários trabalhos assim, mas fiz algumas cenas alcoolizado no cinema do Cláudio Assis, a pedido dele, em combinação conjunta. Era como experimentar o que aconteceria. Tipo, o personagem está bêbado? Esteja bêbado também e vamos ver o que acontece. Mas a ressaca fez parte do meu trabalho durante alguns anos.

Como assim? Como toda pessoa mundana, boêmia, tive muita ressaca. Às vezes ia gravar às 7h da manhã de ressaca. E entendi naqueles anos que a ressaca pelo cansaço e pela fragilidade te dá, abre um canal. Fiz lindas cenas de ressaca, posso te contar várias. Não estava bêbado, estava fragilizado, aberto, cansado, melancólico e aí a cena me atingia de um jeito interessante. Como me formei muito, tinha instrumental para continuar sendo poeta naquele estado, mas algo em mim vibrava na melancolia da ressaca.

Que papéis você interpretou neste estado? Miguezim, de Cordel Encantado, por exemplo. Teve muitas cenas dele com ressaca. Eu gravava muito e ainda era boêmio. E aí não tem perdão, é uma indústria, é 7h da manhã, bebê! Agora, quando se está alcoolizado, não está ator de verdade. Fiz essa experiência com o Claudio algumas vezes no Baixio das Bestas e o resultado é bom para o filme. Mas do ponto de vista do meu artístico, não é tão interessante, porque não lembro de todas as escolhas no momento. Em Baixio, eu bebia e, quanto mais bebia, mais o Claudio mandava eu beber. Até que ele achasse que estava pronto para entrar em cena. Não foi fácil. Até que preferi não beber mais para o personagem, podia sair do controle, inclusive com a Dira (Paes, com quem contracenava em cenas de violência). Por respeito a ela, pedi para não ter que beber.

Você chegou a vivenciar fase alcoólatra? Não bebo há 10 anos, considero o álcool uma ameaça ao meu bem viver. Mas bebi durante muitos anos com bastante alegria e tenho memórias maravilhosas de muitos porres homéricos (risos).

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Há algum tempo surgiam notícias de que era alcóolatra. Incomodou-se com isso? Eu estou no mundo. Achei bom que estivesse transitando com alguma liberdade, mesmo com as proibições da fama. Não me encastelei. Poderia fazer a mesma coisa encasteladinho, ninguém saberia. Estava fazendo o que todo mundo faz, só que era eu. Essa desmedida é cruel. É como se tivesse sendo castigado por algo que todo mundo faz. Em alguns momentos, achei chato, por outro lado não me privei de fazer.

Em Renascer, na TV, e em O Alto da Compadecida, no cinema, você revisita dois trabalhos que estão na memória afetiva do público. Como vê essa experiência? Do meu ponto de vista, Renascer é inédito. Estou recebendo um texto que já foi encenado, mas que é reencenado por um novo diretor, num novo tempo, com um novo elenco e sou o novo intérprete do Norberto. O outro intérprete era o Nelson Xavier, ator que admiro, que coincidentemente morou na mesma rua onde eu tenho casa em Tiradentes (MG). O Auto é a experiência de um ator pegar de novo o seu maior êxito, o João Grilo, meu melhor trabalho. É claro que fiz trabalhos dos quais me orgulho, mas este é especial.

Vinte anos depois, João Grilo soube envelhecer? Não fiquei na partitura procurando a velhice dele. Procurei adaptar a esperteza dele e o arlequim que ele é ao meu corpo mais cansado.

Mais uma pergunta filosófica: tudo bem com a vida até aqui? A vida não é necessária. Do ponto de vista do mundo, do universo, não é. A vida é um acidente lindo. É impressionante que a vida tenha se querido tanto. A vida se quer tanto que ela, do protozoário, se transforma numa alga, da alga vira peixe, do peixe se rasteja para lagarto, do lagarto a um mamífero, que chega uma hora e fica em pé, aí pensa no mundo e cria astronave. É uma loucura, mas a vida não é necessária do ponto de vista planetário. Se a vida toda acabar na Terra, tudo continua igual.

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Não advoga em prol da vida como ato político? É mais do que político. Desse ponto de vista, o Auto da Compadecida é uma das peças mais políticas que temos, porque consegue, sem levantar bandeira, e de maneira até politicamente incorreta, afirmar o problema da diferença de classe social que eternamente rege o homem. João Grilo e Chicó, heróis do Auto, são malandros que sobrevivem com alegria aos podres poderes do mundo.

Por que é uma obra tão atual? Acho que o Auto nos conta sobre o que permanece igual no Brasil. Celebrar isso de novo e talvez, se a gente conseguir, vai provocar de novo no brasileiro esse amor intenso por nós mesmos.

O que pensa sobre os anos de bolsonarismo no país? O Auto dialoga com esse tempo? A classe artística ainda teme a volta do bolsonarismo, porque uma das bandeiras foi o desprezo pela cultura. Para nós, é complicado, a gente acredita que a cultura enobrece o homem e pode formar cidadãos conscientes. Espero que o Auto contribua, como contribuiu 25 anos atrás, para que o brasileiro simples se dê valor e não caia nas garras de pessoas que o desprezam. Nenhum político é perfeito, mas um pouquinho de assistencialismo ainda é necessário, é um país muito grande, que deixou muita gente para trás. Fornecer diversão e cultura é necessário, assim como educação, cinema, literatura, música…

Parte da solução passa pela cultura, não? A solução não é essa preguiça de apostar na meritocracia, de domar os escravos numa religião, de explorar o ambiente até a última gota. Não acho que todo mundo tem que estar dentro do armário e fingir normalidade. O caminho está mais bem apontado agora, sabemos os erros do passado, esperamos e vamos cobrar o que gostaria que acontecesse.

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