‘País de quem quer se dar bem’, diz Murilo Salles sobre o Brasil
Cineasta lança o filme 'O Turista Aprendiz', baseado na obra de Mário de Andrade

Murilo Salles, 75 anos, decidiu trazer para o cinema o que ele chama do verdadeiro retrato do Brasil, ao reviver a obra O Turista Aprendiz, de Mario de Andrade. O filme homólogo é baseado no livro de relatos de sua viagem por todo território brasileiro. Fã de carteirinha do escritor modernista, Murilo defende que o Brasil se tornou o país de quem quer se “dar bem”, sem se importar com a veracidade dos relatos. Em entrevista à coluna GENTE, o cineasta afirma que mundo vive em bolhas, com pessoas convivendo apenas com grupos que dividem uma única opnião; no entanto, não se diz crítico dessa nova forma de viver – embora saiba que em sua juventude, “época do sexo, drogas e rock n’ roll”, era muito mais divertido.
Por que fazer um filme sobre o livro O Turista Aprendiz? Porque sou apaixonado pelo Brasil e, como todo apaixonado pelo Brasil, sou apaixonado pelo Mário de Andrade. Quem inventou o Brasil foi Mário de Andrade. Quando Mário escreveu O Turista Aprendiz, dezesseis anos depois de Macunaíma, o relato é muito mais ficcional e experimental da memória dele do que um relato de viagem. Ele não é um clássico relato de viagem, de jeito nenhum. É uma experimentação. Até para quem não conhece Mário de Andrade, nem a obra, o filme é um prato cheio, é muito bom.
E qual é a importância de trazer esse tema aos dias atuais? É importante, de tempos em tempos, retomar, trazer à tona a ideia e um certo elogio a esse homem tão sensível, tão preocupado verdadeiramente pelo Brasil profundo. Hoje a gente virou o Brasil daquele que quer se dar bem. “Dane-se o país, mas eu quero me dar bem”. Mário, não. Ele queria tornar esse país imenso, gigantesco, próprio, com uma identidade própria, com uma alma própria.
Quando o senhor teve o primeiro contato com a obra dele? Foi adolescente, lendo Macunaíma e depois vendo o filme, estava na faculdade quando vi o filme, tinha dezenove anos, hoje tenho 75. Mário, obviamente, marcou muito a minha geração. Nos anos 1960, 1970, a gente discutia o Brasil todos os dias. É diferente de hoje. Hoje o Brasil fala do Brasil, mas fala de uma forma jornalística, diminuiu-se muito o interesse em dar conta desse país de uma forma mais contundente, mais profunda, mais pesquisada, O Brasil é resolvido na mídia e na relação da mídia com os seus espectadores.
O problema não estaria na visão estereotipada do que é a cultura brasileira? Total. Mas sempre foi um pouco assim. 80 por cento das pessoas veem aquilo que querem ver, é muito difícil você se meter numa coisa que não quer ver, ou que você tenha medo, ou que não tenha interesse… Você só vai procurar aquilo que quer; ou, então, você é muito masoquista. Não existe mais uma preocupação do que é, do que é aquele relato, se há verdade nele… As pessoas não querem se questionar o tempo todo.
Há uma crise contemporânea do que é a verdade, não? Concordo. A gente quer reforçar e encontrar o grupo do que a gente acha, não quero encontrar um grupo do meu oposto. É um pouco abrir as portas do paraíso para o processo comum, pelo reforço dos egos. Ninguém está afim de procurar a verdade porque o homem, antes de mais nada, é um grande ficcionador. Cristo, por exemplo. O conto da vida de Cristo é ficção. A Bíblia relata uma história construída por milhões de pessoas e é assinada por um tal de Romero. É muito difícil você querer se dedicar a procurar o tempo todo a verdade das coisas, então procura aqueles que afirmam o que você acha.
O senhor já produziu filmes que falam da realidade política brasileira. Faria um filme, por exemplo, sobre o julgamento do Bolsonaro desta semana? Tem um filme, que estou terminando, que é uma história de um PM no Rio de Janeiro e a sua filha. Se baseia nesse processo da relação e acompanha um pouco ele virando miliciano. Mas tenho uma dúvida no coração, se essas coisas que são tão parte do nosso cotidiano, as pessoas querem ver no cinema…
A corrupção e a violência nunca saem de moda por aqui… E continua pior. Mas isso também, assim, é uma coisa meio que tem no mundo inteiro. Gosto de fazer temas brasileiros. Por exemplo, fiz um filme sobre uma blogueira gaúcha, com o oitavo blog mais visitado no mundo; e o brasileiro era o país que mais tinha adeptos ao Orkut. Esse é um filme sobre o Brasil, mas de uma ótica muito particular.
Um assunto muito em alta ultimamente é o etarismo. O que o senhor pensa disso? O mundo sofre isso. Os senhorizinhos, sei lá, as senhoras… Os que passam de sessenta anos para frente são muito maltratados pela vida. Desde o maltrato de pensionato, de INSS pelos países, as aposentadorias, como na rua. Você está num metrô, você está ali, velho, cheio de gente jovem sentada e ninguém se levanta para dar um lugar a uma senhora. É muita covardia, é egoísmo, Um absurdo. Aliás, acho todos os ismos um absurdo, mas o etarismo é inteiramente violento. Assim como o racismo, a homofobia, a misoginia… O Brasil é muito violento. Como é que pode um país desse dar certo?
Por fim, como fazer cinema num mundo encantando com as facilidades do streaming? O que os jovens estão perdendo? A Netflix inventou a forma de faturar antes do ingresso, você paga por mês, eles recebem uma fortuna e compram e produzem filmes. O streaming está ao nível de uma inventividade. Por exemplo, essa série Adolescência, ela é impressionante, muito boa… Então continua sendo puramente capitalismo, só muda a forma da cobrança. O streaming passa filmes velhos, novos, maravilhosos, ridículos. 70 por cento da produção do streaming é puro trash. Tem umas coisas engraçadas, as séries que a garotada adora, aquelas da Coreia do Sul.
E qual era a “boa” da garotada da sua época? Sou de uma geração que era sexo, drogas e rock and roll. Sou totalmente da época da revolução cubana, do hippie… E a novidade no mundo hoje é o streaming. Prefiro as novidades da minha época: Rolling Stones, The Beatles, Che Guevara, acho muito mais interessante. Mas é o mundo girando, né? O mundo está virando uber, airbnb e streaming.