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Vida de Imigrante

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Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
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Motosserra

Foi para o sótão o péssimo investimento de minha crise de meia-idade; mas é linda, verde, elétrica, barulhenta e moderna

Por Edison Veiga Atualizado em 3 nov 2024, 14h56 - Publicado em 31 out 2024, 07h01

Jamais derrubei uma árvore. Tenho dó até de arrancar as ervas daninhas da horta, porque penso que são seres vivos que nem eu. Jamais derrubaria uma árvore, juro. Plantar, já plantei. Mais de uma. Quase várias, até.

Jamais derrubei ou derrubaria uma árvore mas quando estava na iminência de me mudar de um apartamento — o sétimo endereço do tipo em que habitei na vida — para uma casa, antes mesmo de pensar que estava retornando ao modus vivendi de minha infância no interior paulista, achei que precisava comprar uma motosserra.

Vou ter quintal, pensei. E achei natural gastar uma madrugada em dois ou três sites eslovenos de ferramentas, apetrechos de jardinagem e outros que-tais. Olhando de tudo: rastelo, pá, regador de plástico, enxada, furadeira, parafusadeira, cortador de grama, martelo, picareta.

Mas acabei seduzido pela motosserra.

De tal forma que fui dormir pensando se não era melhor mesmo dormir para ver se passava.

De tal forma que pensei que talvez tivesse chegado à tal crise de meia-idade.

Afinal, ok, logo teria uma casa com quintal. Ia ter de pensar em cuidar de plantinhas no jardim. Talvez até podar as árvores frutíferas — que ainda nem sequer haviam sido plantadas, quiçá escolhidas. Cerca-viva vamos ter, certo? Vou ter de podar.

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Motosserra não serve para podar, obviamente.

Era linda no site. Verde. Fiquei imaginando o barulho dela. Seus dentes funcionando contra um pedaço de madeira. Eu não poderia ter uma motosserra só para brincar de cortar tábuas, restos da construção? Talvez fosse bom, até. Esse monte de tábua no meio do entulho da obra, vamos ter de dar um jeito de descartar. A lata de lixo não reciclável é pequena. Com a motosserra poderia transformar facilmente a sobra de tábuas em pedacinhos pequenos que coubessem no lixo. Pronto, estava justificado.

Acordei com a ideia fixa ainda pendente no meu cérebro, estava convencido que todo homem contemporâneo beirando os 40 precisava — precisa — ter uma motosserra própria. E não importava que naquele mês o dinheiro estava mais contadinho do que o normal, raro como um dia de sol no mês de maio da Eslovênia. Não importava que tínhamos de pagar mudança, uma ajuda para montar os móveis da Ikea, terminar de comprar os eletrodomésticos da cozinha nova e ainda resolver um monte de coisa que faltava para transformar um recém-construído imóvel completamente vazio em um ambiente que pudesse ser chamado de lar. Meu lar.

Comentei com a Mariana que ia dar um pulinho lá na Merkur porque achava que ia ser útil — não, não falei útil; devo ter dito “essencial”, “fundamental”, “extremamente necessário”, “imprescindível” — comprar uma motosserra.

No íntimo, esperava que ela me demovesse da ideia.

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Mentira. No íntimo, torcia para ela ratificar minha ideia, elogiar minha iniciativa, fazer algum comentário de incentivo, elogiar minha masculinidade, exaltar meus superpoderes de lenhador. Dizer que estava feliz porque finalmente teríamos uma motosserra. Que a partir de então dormiria tranquila. Sempre.

Ela concordou laconicamente, acho que só fez um aham ou balançou a cabeça positivamente. Devia estar preocupada com coisas menos importantes de uma mudança, como o agendamento do horário do carreto, a definição do modelo da cama ou o valor reajustado do financiamento imobiliário. Provavelmente era isso. Provavelmente estava pensando em todas essas coisas ao mesmo tempo, e outras tantas que eu nem posso arriscar. Aspectos práticos.

Ela jamais atentaria contra a vida de uma árvore — seria civilizada, bem-educada

Eu estava sonhando acordado com uma motosserra. Linda. Verde. Barulhenta. Elétrica. Potente. Eficiente.

Uma motosserra que seria civilizada e bem-educada. Jamais atentaria contra a vida de uma árvore. Jamais estaria a serviço de abrir caminhos para a boiada passar. Jamais seria manipulada por alguém que admirasse o Salles.

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Meia hora depois voltei com a motosserra na caixa. Mas fui absorvido pelas tarefas menos urgentes, como empacotar a mudança para o carreto, colocar o que coubesse no carro, levar as coisas do endereço velho para o novo. Fui completamente envolvido pelas tarefas menos honrosas, como atualizar os dados pessoais nos documentos e informar as autoridades locais da nova residência. Fui imensamente aturdido por missões menos significantes, como montar móveis, refazer contas para ver o que cabia no orçamento do mês, abrir caixas e organizar a nova despensa.

A motosserra ficou na caixa por um mês. Aí, num domingo, abri a caixa. Montei a danada. Botei óleo. Quando ia ligar na tomada, pensei: o que raios vou fazer com uma motosserra?

Encaixotei-a novamente e guardei no sótão. Dinheiro mal gasto.

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