Apenas uma fotografia na parede
Entre a 'Canção do Exílio' e a 'Confidência do Itabirano', um pouco de lirismo na vida do expatriado

“Ô, você que gosta dessas coisas de literatura aí, que poema serve melhor para resumir as agruras e as delícias do imigrante, cara?”, perguntaram-me outro dia.
Fiquei de pensar.
O ficar-de-pensar é uma instituição. Das melhores. Das mais úteis, aliás. Funciona tão aos propósitos — de tergiversar, de sair pela tangente, de escapar do desconforto, de enfiar a cabeça na terra feito avestruz — como o um-dia-a-gente-se-vê, o depois-a-gente-resolve, o vamos-marcar e o se-der-eu-vou.
Mas eu tenho alguns problemas. Muitos. Na verdade sou meio colecionador de problemas. E um desses problemas é que quando eu fico de pensar, na verdade eu já fico é pensando mesmo. Não dou tempo para essa preposição, de, exercer uma leve barreira entre o verbo ficar e o verbo pensar. Vou de gerúndio. Fico pensando a partir do exato momento em que fico de pensar.
De modo que cheguei em casa propenso a revisitar algumas páginas antigas de minha biblioteca, entre as ideias de exílio e alguma confidência. O romântico Gonçalves Dias eternizou o dramalhão todo de forma comparativa: minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores. E não adianta nem tentar porque as aves que aqui gorjeiam, ah, pobrezinhas, não gorjeiam como lá, jamais gorjeariam, veja só…
E o incauto poeta expatriado cismando sozinho à noite está com a cabeça lá longe, em sua terra, porque o prazer só encontra nela, onde estão os primores. Então ele encerra o texto quase em oração, clamando a Deus que não permita que ele morra sem que volte para lá, desfrute os primores, aviste as palmeiras, ouça o sabiá.
Preciso confessar uma coisa: toda vez que leio esse poema minha cabeça é fisgada pelos tais primores. Que seriam esses que só mesmo na terra dele?
Também os quero.
Estaria o autor sonhando com um delicioso maracujá? Ou pensava como era bom pisar descalço na areia da praia e depois refrescar os dedos do pé no rasinho do mar? Sonhava com uma livraria cheia de estantes em português? Ou tinha saudade de um churrasco com os amigos, domingão, todo mundo de chinelo e bermuda, um sambinha no Spotify?
Deixei de lado a Canção do Exílio e parti para Carlos Drummond de Andrade lembrando que alguns anos viveu em Itabira, aliás principalmente nasceu em Itabira.
Ele nem precisa estar tão longe, nem precisa ter cruzado um Atlântico. Saiu só do interior de Minas e foi para a beira do Atlântico, na verdade. Trocou a cidadezinha pela então capital.
A saudade tinha essa distância.
Porque o Rio de Janeiro nunca foi assim tão longe nem nada.
A beleza não está no disco riscado daquela saudade doentia
Porque principalmente nasceu em Itabira, ele é triste, ele é orgulhoso, ele é de ferro — o ferro que jaz nas calçadas, o ferro que amalgama na alma. E conjuga esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
De Itabira ele carrega o intangível: a vontade de amar, as noites brancas sem mulheres nem horizontes, a sofrência que tanto o diverte, o orgulho cabisbaixo, as lembranças de tempos em que teve ouro, gado, fazendas. De Itabira ele carrega o que é possível caber numa mala velha: uma pedra de ferro, um São Benedito, um retalho já puído de couro de anta estendido no sofá.
Mas o poeta sabe que o que se é também só se é porque resulta daquilo que se foi. E é só isso mesmo, porque na vida não se volta casas atrás nem quando o tabuleiro surpreende com uma carta de revés. Então o poema conclui com uma bela definição de saudade, esta palavra que só existe porque as coisas, as pessoas e as experiências têm seu lugar no espaço e, principalmente no tempo: Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!
Confidência do Itabirano diz mais sobre o imigrante do que a Canção do Exílio porque a beleza não está em ficar patinando no velho discurso de que lá no Brasil o carnaval é melhor, tem pastel de feira, há mais calor humano e um sabiá-laranjeira canta em São Paulo às 4h30 da manhã. Mesmo que tudo isso seja verdade — e é.
A beleza não está no disco riscado do nhenhenhem dos tais primores, do desejo de voltar para lá. Não há beleza na saudade doentia.
A beleza verdadeira está em situar o passado como uma fotografia na parede — e tentar extrair o significado a partir daí.
Taquarituba é apenas um fundo de tela no laptop. Mas como dói!
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