Acordei disposto, feliz da vida, saltei da cama — e caí em cima da mesa ao lado dela. Gritei, gemi. Pedi ajuda. Minha fiel funcionária veio correndo. Olhou e diagnosticou: “O senhor quebrou a perna!”. “Não, não”, protestei. Como não há nenhum grito que supere a supremacia de um osso quebrado, logo me vi internado em um grande hospital paulista.
A notícia: fratura das boas. “Mas como? Foi uma queda pequena, inocente…”, me disseram. E no hospital: “O senhor tem sorte porque tem vaga”. É a dura realidade hospitalar nacional. Ter vaga já é sorte. Após passar por raio-X, ressonância e uma longa cirurgia, entrei em uma outra fase complicada: o processo de recuperação. Aprendi a tomar banho de cadeira, a evitar uma nova queda — porque outra fratura seria o Apocalipse — e até a gostar de comida de hospital. O que, convenhamos, supera o próprio Apocalipse. Também descobri como conviver com visitas que pouco — ou nada — têm a dizer.
— E aí, tá tudo bem?
— Se estivesse tudo bem, eu não estaria aqui…
— Não seja mal-humorado. Daqui a pouco nem lembra mais!
Minha vontade nessas horas é responder: “Só me deixa sofrer em paz”.
“É preciso mais cuidado dentro de casa do que fora dela. Uma mesa velha virou minha maior inimiga”
Mas não é assim. Quanto mais pareço sofrer, mais as pessoas dizem: “Não é nada, você está exagerando, já vai passar”. O correto é que eu finja que dói menos. Digo, enquanto sinto o pé rachar de dor: “É suportável, tanta gente sofre pelos mais variados motivos”. E ouço: “Como você é forte, corajoso! Mas vai superar”.
As pessoas parecem acreditar que a dor é algo abominável. Até vergonhoso. Confessar a dor, até mesmo em um hospital, não cai bem. Nessa fase de recuperação, já tive vontade de gritar: “Dói, sim, é um horror. Agora me deixa em paz e deixa eu sofrer sozinho”.
Eu não acho feio sofrer, mas as pessoas parece que sim. Tudo que remete ao sofrimento é relacionado com castigo, punição. É feio sentir dor. Ainda mais devido a um acidente. Nesses dias, tenho sido tachado de “descuidado”, no mínimo. “Você não presta atenção!”, “É castigo!”. Mas castigo de quê, meu Deus?
Hospital é um local onde se exercitam mentiras. Uma (ex) amiga, assim que saiu do hospital, onde fora me visitar com sorrisos e palavras de encorajamento, comentou: “Ele merece tudo isso que está acontecendo. Já fez mal para muita gente”. Não sou nenhum santo, e talvez mereça muito mais. Mas não acredito que alguém receba dos céus a missão de ir ao hospital, dizer palavras de conforto a um amigo doente e descer o sarrafo já na saída. Certas pessoas me assustam. Mas tenho mais medo de móveis mal colocados, vasos rachados e panos molhados no chão.
O índice de acidentes domésticos que podem causar até morte é gigantesco. Juro, até uma xícara é um inimigo. Um sapato velho, pior que um skate numa ladeira. O risco é para qualquer um, mas idosos, então, nem se fala (eu já me classifico como idoso). Tudo em torno é ameaçador. Brinquedinhos que fazem escorregar, doces para os netos em cima do armário que parecem ter asas, e assim por diante. É preciso mais cuidado dentro de casa do que fora dela. Acidentes domésticos acontecem o tempo todo. Uma mesa velha me deixou torto. Quando eu pensei que de repente ela se tornaria minha maior inimiga?
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871