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Lágrimas de crocodilo

Cuidado com o amigo interesseiro: ele pode lhe dar uma rasteira

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 nov 2024, 08h00

Amizade pura e sincera era um sonho da literatura romântica. Nos grandes clássicos, muitas vezes são exaltadas duas pessoas que não se largam, até vivem vidas paralelas. Os tempos mudaram, a inocência perdeu seu lugar. Frequentemente, amigos íntimos são namorados fogosos, que disfarçam a situação. Bentinho e Escobar, em Dom Casmurro, por exemplo, são tão próximos a ponto de causar dúvidas. Bentinho estava com ciúmes de Capitu ou, na verdade das verdades, do próprio Escobar? Que me perdoem os acadêmicos, mas quem traiu quem? Fato: essa tal amizade de não se largar nunca abre espaço para outras interpretações. Inclusive na vida real.

Não existe mais aquele laço do passado, fiel, a ponto de um cuidar da família do outro em caso de morte. Essa amizade idílica foi substituída por um duro realismo. Para subir de cargo, uma pessoa detona a outra sem piscar. Pior: amigos demitem amigos e ainda dizem que se lamentam.

A vida ficou mais difícil, raras são as amizades eternas. Faz pouco tempo faleceu uma amiga de infância. Foi ela quem me emprestou os primeiros livros, pois seu pai era professor. Senti um aperto no coração. Não só por sua passagem. Mas por pensar em tudo que poderíamos ter vivido, se tivéssemos nos esforçado para manter a ligação. Mas eu mudei para São Paulo, ela para o Rio de Janeiro, Brasília… Perdemos o contato.

“Não existe mais aquele laço do passado, a ponto de um cuidar da família do outro no caso de morte”

Mas o pior é aquele suposto amigo que vive próximo, compartilha nossas vidas e quer beber nosso sangue. É aquela pessoa que, de fato, queria viver minha vida. Quando se dá o rompimento, muitas vezes por uma bobagem, tudo vem à tona. O que eu não fiz que na sua opinião devia ter feito? No meu caso, especificamente, sempre me cobram arrumar trabalho em novela. Mas para outras pessoas, é a exigência de cargo na empresa, de indicação para algum lugar poderoso. Sempre fico surpreso — nem sequer imaginava que aquela pessoa desejava aquele lugar. Na maioria das vezes, nada em seu currículo indicaria aquele caminho profissional. Ainda mais: caso você arrume um lugar, na primeira chance, o amigo interesseiro pode lhe dar uma rasteira. É de seu perfil.

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Muitos veem na relação de amizade uma oportunidade para justiça social. Pedem dinheiro emprestado. Quando tempos depois, toco no assunto, dizem que não dá pra pagar, mas que mais tarde… Só que para os outros amigos dizem que sou avarento. Não preciso, por que insisto em receber?

Interesseiro também manipula. Tive um que me ligou pois tinha sido ameaçado por um credor. Chorou no telefone. Eu, crédulo, emprestei o que faltava para ele se livrar da dívida. Meses depois, entendi por que o credor ficara furioso. Não me pagou e ainda ficou bravo. Não sou do tipo que ameaça, ofende. Perdi o amigo, o dinheiro e mais uma vez prometi a mim mesmo nunca mais emprestar dinheiro a alguém. Há pessoas para quem a amizade é uma espécie de negócio. É linda quando verdadeira. Mas frequentemente vira interesse. Mas eu sou molenga e ainda me deixo comover por lágrimas de crocodilo.

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918

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