
Sou uma pessoa razoavelmente inteligente. Pelo menos, é nisso que gosto de acreditar. Consigo pagar boletos no banco digital sem chorar (muito), programar o despertador sem precisar assistir a um tutorial e até montar um quebra-cabeça de 500 peças sem recorrer ao Google. Mas há algo que me faz questionar minha própria capacidade mental: manuais de instrução. Você já tentou montar um móvel sozinho seguindo um manual? É uma experiência quase espiritual, porque exige fé. Fé de que aquele desenho malfeito faz algum sentido. Fé de que todas as peças realmente existem e não foram esquecidas na fábrica. Fé de que você vai terminar o processo com o mesmo número de dedos com que começou.
Os manuais seguem um padrão universal de tortura psicológica. Primeiro, começam com a ilusão de que tudo será fácil: um simpático bonequinho sorridente segurando uma chave de fenda e uma legenda dizendo: “Montagem simples em dez passos!”. Mentira. Isso é o equivalente a dizer que subir o Everest é só uma caminhadinha. Depois vêm os diagramas. Ah, os diagramas… Pequenos desenhos confusos com setas apontando para lados diferentes, peças que não existem na sua caixa e instruções como: “Encaixe o parafuso tipo B na peça X e gire 90 graus no sentido anti-horário até ouvir um clique”. O problema? Ou o clique nunca acontece, ou ele acontece cedo demais, seguido de um estalo preocupante. E os manuais traduzidos automaticamente? São verdadeiros testes de paciência. Em alguns casos, de criptografia. “Agora inserir suporte ao lado de junto de abaixar e apertar com convicção.” Convicção?! Eu queria só um sofá montado, não um desafio filosófico.
Mas o pior são os eletrônicos. Você só quer configurar sua smart TV, mas o manual parece ter sido escrito por um engenheiro da Nasa. Ele começa perguntando coisas como “Sua conexão é IPv4 ou IPv6?” e, de repente, você se vê fazendo um curso técnico para ligar um aparelho que, em tese, deveria ser “plug and play”.
“Eles seguem um padrão universal de tortura psicológica: começam com a ilusão de que tudo será fácil”
E quando os manuais vêm sem palavras? Só desenhos enigmáticos, como se fossem obras de arte moderna. Você passa mais tempo tentando decifrar do que montando o objeto. Recentemente, vi um que era uma sequência de setas apontando em direções diferentes, seguidas por um bonequinho com cara de dúvida. Se até o bonequinho está confuso, o que sobra pra mim? Agora, há um caso especial: os eletrodomésticos. Os manuais de micro-ondas trazem sempre uma lista de coisas que não se pode colocar dentro. Mas nunca explicam o mais importante: por que há um botão de 30 minutos se uso no máximo 3? O que vai esquentar por tanto tempo? Um meteoro? Se aperto o tempo errado, corro o risco de criar um buraco negro na cozinha.
E aqueles avisos inúteis? O manual do meu ferro de passar dizia: “Não passar roupas enquanto estiver vestindo”. Obrigado pela dica, manual. Pior: após horas de frustração, suor e possível colapso emocional, a gente descobre que perdeu um parafuso essencial e precisa desmontar tudo para recomeçar. É aí que se entende por que há tantos vídeos no YouTube ensinando a montar qualquer coisa — porque ninguém, absolutamente ninguém, lê os manuais até o fim sem enlouquecer um pouco. Ou, em alguns casos, pirar de vez. Se um dia você se sentir burro diante de um manual, lembre-se: o problema não é você. São eles. Sempre foi assim.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933