O polvo, grelhado ou ensopado, sempre esteve entre meus pratos prediletos. Tanto que aprendi a cozinhá-lo com um mestre em culinária japonesa. Fácil. Primeiro, dê uma surra no polvo. Sim, não basta ter sido pescado. Precisa apanhar, ser esmurrado e batido contra a pedra da pia. Depois “assuste” o pobre coitado (como se já não estivesse assustado com tal tratamento). Afunde duas vezes na água fervente, para que os tentáculos se retraiam. Ferva a água. Atire o polvo. Conte dez minutos certinhos, retire da água quente e jogue na fria, de preferência com pedras de gelo. Já fiz esse procedimento algumas vezes.
A carne do polvo fica macia. Só há um problema: eu me sinto um monstro. Sempre comi polvo até me fartar. Até o dia em que li um artigo dizendo que esse molusco, vejam só, tem subjetividade. Essa característica o aproxima mais do ser humano do que de um escargot, por exemplo. Enfim, subjetividade e sentimento andam juntos. Eu não comeria um cachorro, por exemplo, embora existam uns bens gordinhos e suculentos. A psique de um polvo é mais cheia de possibilidades. Enfim, o polvo tem alma? Um amigo me indicou um documentário, no streaming, chamado Professor Polvo. Trata-se da amizade entre um humano e um polvo. Desenvolvem laços, criam uma relação.
A partir daí, eu não tinha mais coragem de comê-lo. Era como se eu fosse devorar alguém próximo a mim. Não tenho o mesmo sentimento em relação a vacas, confesso. Talvez porque elas pareçam conformadas com seu destino. Nunca gostei muito de aves, mas, enfim, se está no prato… Mas o polvo me despertava um sentimento diferente.
“Eu não tinha mais coragem de comê-lo. Era como se fosse devorar alguém próximo a mim”
Parei de comer polvo, em solidariedade à sua subjetividade. Até li que é uma espécie com um bom grau de inteligência. Por exemplo, um polvo se reconhece no espelho. Ou melhor, sabe que não é ele mesmo. Inquietante. Mas, vejam, às vezes eu não me reconheço no espelho, principalmente no fim de uma noitada. Isso me faz tecnicamente inferior a um polvo, sem contar o número de braços comparados aos tentáculos. Resisti até pouco tempo atrás. Via um polvo grelhado, engolia em seco e fugia.
Uma vez, no aquário de Portugal, enviei sinais a um deles, mas não foram retribuídos. Dei razão ao polvo. Quem cumprimenta aquele que o devora? Respeitosamente, fiquei meses sem comer polvo. Mas a vida é difícil.
Faz um tempo provei um pedacinho de tentáculo grelhado. Só um pedacinho. Mas há portas que não devem ser abertas. Na sequência, devorei um polvo inteiro, pedindo desculpas à sua subjetividade e pensando: existem polvos filósofos? Não deu outra: o polvo voltou ao meu cardápio. Uma amiga já me prometeu trazer polvo à espanhola, que ela faz muito bem. Aceitei, para breve, porque hoje comi grelhado. Nem peço mais desculpas, sinto apenas algum remorso – subjetividade, será?
Só mudarei novamente se, por exemplo, um polvo escrever um livro ou lançar um funk. Que me perdoem os protetores da natureza. Mas comer polvo é uma delícia, por mais culpa que eu sinta eventualmente.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894