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Walcyr Carrasco

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Teoria e prática

Por trás de certos comportamentos radicais há sempre outro lado

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h46 - Publicado em 19 set 2021, 08h00
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  • Ela é tida como santa no Centro-Oeste, onde mora. Bonita, sofisticada, chegou a ser miss. Dedica a vida a cãezinhos e gatinhos. Tem ONGs. Já adentrou uma comunidade na madrugada para salvar uma vira-­lata que sofria maus-tratos. Procura lares para os órfãos. Mesmo quando uma amiga não está disposta a adotar, pede verbas para remédios e tratamentos. Prepara o bichinho abandonado para a vida, não o deixa só. Posta no Instagram para incentivar novos colaboradores. Irrita-se com quem não gosta de bichos. É capaz de ficar solteira. Sem um pet, jamais.

    Há algum tempo, resolveu fazer uma plástica. Não uma simplesinha. Mas no corpo. Abdo­mino­plas­tia inclusive. Rosto, que os 40 já se anunciam. Enfim, uma reestruturação geral. Até costumo chamar certo tipo de plástica de engenharia, tão fundas são as intervenções. Foi o caso.

    Veio para São Paulo e hospedou-se na casa da melhor amiga, que morava só com seu gato em um apartamento muito, muito alto. Operada e toda costurada, de colete na barriga, deitou-se. No primeiro dia, foram as comidinhas, as gentilezas. No segundo, a amiga saiu para trabalhar. Deitada, mal podendo se mexer, ouve:

    — Miauuuu. — Era o gato!

    Por um poder de atração que só os gatos têm, este sentiu-se imediatamente atraído pela barriga costurada. Foi até ela e ron, ron, ron. Apavorada, ela sentia as unhas riscando o colete curativo. Rash, rash, rash. Os pontos do rosto quase explodiram de nervosismo.

    — Esse gato, não sei, não — pensou.

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    Mas era um gatinho tão lindo, e ron, ron, ron.

    A dona da casa chegou, abraçou o gatinho. Contou que era seu grande companheiro na vida. Disfarçadamente, a operada observava o gato.

    “Quem fala muito e espeta o dedo para criticar muitas vezes é o primeiro a fazer o oposto do que diz”

    No dia seguinte, mesma rotina. Sozinha com o gato. E lá veio ele, ávido. Parece um conto de Edgar Allan Poe, não é? Ele esticou as garras e rush, rush, rush. Mais forte que no dia anterior. Ela reuniu todas as forças, que nem tinha. Levantou-se. Foi até a janela próxima da cama. Abriu. Deitou-se novamente.

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    O gato veio. Esticou as patinhas.

    Num impulso único, ela ergueu o bichano e o fez voar pela janela.

    Silêncio aliviado. A dona da casa chegou.

    — Pit pit pit… cadê meu gatinho?

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    — Não vi.

    — Mas quando saí ele estava aqui.

    — Sei lá, eu dormi… Cadê o gatinho?

    A outra chorando vasculhou cada centímetro do apartamento.

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    — Não pode ser, gatos não desaparecem.

    — Eu também acho, mas dormi tão bem…

    Lá embaixo, nem sinal. Nem mesmo estatelado na rua.

    Resumo: nunca mais se ouviu falar do gatinho. A dona até hoje chora, era um amor tão grande. A outra consola.

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    — Eu arrumo outro. Há tantos gatos sem donos.

    — Não quero, não quero.

    Refeita da plástica, voltou para suas ONGs. Recebe doações. Salva animais. E o segredo do gato ficará guardado para sempre. Só soube por mera casualidade. Foi bom. Gosto de saber que por trás de certos comportamentos radicais há sempre outro lado. Quem grita muita teoria, quem fala muito de boas ações e espeta o dedo para criticar o outro muitas vezes é o primeiro a fazer o oposto do que diz.

    Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756

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