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Brasil

Tragédia em Mariana: para que não se repita

Entenda como técnicas mais modernas de tratamento de resíduos da mineração poderiam ter impedido que o distrito de Bento Rodrigues fosse varrido do mapa

por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Nicole Fusco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jan 2022, 15h25 - Publicado em
11 nov 2015
13h49

Entenda como técnicas mais modernas de tratamento de resíduos da mineração poderiam ter impedido que o distrito de Bento Rodrigues fosse varrido do mapa

Com 317 anos, o distrito de Bento Rodrigues, na cidade mineira de Mariana, tinha história. O vilarejo de 600 habitantes fez parte da rota da Estrada Real no século XVII e abrigava igrejas e monumentos de relevância cultural. Em 5 de novembro, em apenas onze minutos, um tsunami de 62 milhões de metros cúbicos de lama aniquilou Bento Rodrigues. Dez mortes haviam sido confirmadas até a tarde da última sexta-feira e dezoito pessoas continuavam desaparecidas. A onda devastou outros sete distritos de Mariana e contaminou os rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce. Moradores de cidades em Minas e no Espírito Santo tiveram a rotina afetada por interrupções no abastecimento de água. O destino final da lama deve ser o mar do Espírito Santo, onde o Rio Doce tem sua foz. O que causou a tragédia foi o rompimento de duas barragens no complexo de Alegria, da mineradora Samarco. As barragens continham rejeito, o resíduo não tóxico resultante da mineração de ferro.

Eram três as barragens de rejeito em Alegria: a de Germano, a de Fundão e a de Santarém. Todas operavam segundo o sistema de aterro hidráulico, tradicional e empregado em todo o mundo. Ele conta com a ação da gravidade para fazer com que os resíduos separados do ferro escoem até bacias. A parte frontal dessas bacias é feita de areia, para filtrar a água. O Ministério Público de Minas Gerais e a Polícia Civil abriram inquéritos para apurar as causas do desastre, mas uma resposta satisfatória não deve vir antes de seis meses. A principal hipótese levantada pelos técnicos, contudo, é que tenha ocorrido o processo de liquefação, que se dá quando essa camada arenosa externa, em vez de expelir, retém a água. Uma variação brusca na pressão interna do depósito de rejeito pode então transformar areia em lama, que não consegue mais conter os resíduos que estão atrás. Isso explicaria o rompimento da barragem de Fundão — o que arrasou a de Santarém e tudo o mais que havia pela frente. Dois abalos sísmicos de pequena magnitude registrados na região pouco antes da tragédia podem ter acarretado a mudança de pressão na barragem — hipótese que também precisa de comprovação.

É evidente que houve negligência, ou no monitoramento ou na operação do empreendimento”

Carlos Eduardo Ferreira Pinto

Segundo a lei, empresas que exercem atividades com riscos conhecidos, como a mineração, assumem o ônus por eventuais acidentes. Por isso, o monitoramento das barragens é um dos pontos críticos do empreendimento. “Os rejeitos se acumulam, e os engenheiros vão ampliando as estruturas”, diz o professor de geologia de engenharia da USP Edilson Pissato. Há depósitos com 200 metros de altura. O de Fundão tinha 90 metros. Existem técnicas mais modernas para lidar com o rejeito, que usam filtros para garantir sua drenagem. Seus custos podem encarecer a exploração de uma jazida em até seis vezes. “Por isso, as mineradoras acabam assumindo o risco de usar os processos tradicionais”, diz Pissato. A ONG International Commission on Large Dams (Icold) calcula que ocorrem em média dois rompimentos como o de Mariana por ano no mundo.

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Além da tragédia humana, o desastre em Mariana teve impacto ambiental difícil de avaliar. O Ibama já aplicou multas preliminares no valor de 250 milhões de reais à Samarco. A mineradora deverá arcar ainda com a indenização às pessoas afetadas e com os custos de reconstrução da região atingida. Na última sexta-feira, a Justiça de Minas bloqueou 300 milhões de reais da conta da Samarco para garantir esses pagamentos. Executivos do setor classificam o evento como o “11 de setembro” do segmento. Todos esperam um endurecimento das regras para as mineradoras. Há um novo Código de Mineração em tramitação na Câmara dos Deputados, e é certo que ele venha a incluir emendas que obriguem as mineradoras a intensificar o monitoramento de suas bacias de rejeito. “Depois de Mariana, ninguém mais vai conseguir licença para construir barragem sem filtro. A sociedade não vai aceitar mais correr esses riscos”, diz o engenheiro e geotécnico Joaquim Pimenta de Ávila. O Brasil abriga cerca de 800 barragens como as que se romperam, liberando a lama que arrastou vidas e patrimônio incalculável em seu caminho.

Com reportagem de Talyta Vespa

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Os heróis de Mariana

Bombeiro coberto de lama trabalha no resgate de vítimas no distrito de Bento Rodrigues
Bombeiro coberto de lama trabalha no resgate de vítimas no distrito de Bento Rodrigues (Ricardo Moraes/Reuters)

Conheça os personagens que percorreram o distrito histórico de Bento Rodrigues para salvar os vizinhos em meio ao tsunami de lama provocado por rompimento de barragens de rejeitos da mineradora Samarco

Por Gabriela Garcia, de Mariana, Nicole Fusco e Eduardo Gonçalves

Passava das 16 horas quando um barulho ensurdecedor interrompeu, em 5 de novembro, a tranquila rotina do distrito de Bento Rodrigues, na cidade mineira de Mariana. Seguiram-se, então, uma nuvem de poeira e o revoar dos pássaros. Os moradores do vilarejo perceberam ali que havia algo errado. Em questão de minutos, gritos e buzinas tomaram as ruas: a onda de lama se aproximava. Só havia tempo para correr. Documentos, dinheiro, roupas, histórias – tudo ficou para trás. Bento Rodrigues foi riscado do mapa. Nem todos tiveram tempo de fugir. Dex pessoas morreram e pelo menos dezoito seguiam desaparecidas até sexta-feira. O desastre foi provocado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos – resíduos resultantes da exploração do minério de ferro – da mineradora Samarco localizadas a cinco quilômetros do distrito. Sem que os telefones funcionassem, a solidariedade dos moradores do distrito evitou que a tragédia ceifasse ainda mais vidas.

A auxiliar de serviços gerais Paula Geralda Alves, de 36 anos, percorreu a cidade em sua moto de 50 cilindradas batendo de porta em porta para avisar os vizinhos. “Saí correndo igual a uma louca, gritando ‘a barragem rompeu, a barragem rompeu'”, conta. “Só quando eu cheguei lá em cima do morro olhei para baixo. Foi então que eu vi que tinha acabado tudo. Em momento algum eu olhei pra trás. Se eu olhasse, eu desistiria.”

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Sandra Domertides Quintão, de 44 anos, dona de uma pousada centenária adquirida pelo pai, percebeu o desastre ao sair para a janela para ver o ônibus das 16 horas que passa diariamente na cidade rumo ao município vizinho de Santa Rita Durão. Corri para avisar a minha irmã e ela não acreditou porque a chuva de poeira é muito comum ali. Mas eu não duvidei, eu nunca duvidei. Eu sempre soube que isso iria acontecer”, relata. Ao lado da irmã Terezinha, ela despachou seu carro com quatro pessoas – entre elas sua filha Ana Amélia, de dois anos – e começou a buscar outros moradores. Elas subiram no carro de um amigo, depois de carregarem uma idosa que estava com o fêmur quebrado e não conseguia andar. Tentaram ainda chegar à casa de Thiago Damasceno, uma das crianças mortas na tragédia, mas o tsunami de lama de mais de 10 metros de altura chegou antes. Bento Rodrigues desapareceu do mapa em menos de 10 minutos.

A coisa mais valiosa era uma foto da minha mãe. Ela morreu da doença de chagas, quando eu tinha 9 meses. E aquela foto era a única lembrança que eu tinha dela”

Keila Vardele Sialho

O irmão de Sandra, Antônio, subiu em sua caminhonete com a mulher e recolheu quinze vizinhos. “Uma idosa foi levada em um carrinho de obra e voltou para buscar dinheiro. Eu a carreguei à força. Deixei mais de 50.000 reais embaixo do meu colchão. Mas nada disso importa agora”, conta. Antônio colecionava mais de 200 espécies distintas de aves em casa, entre calopsitas, canários belgas, mandarim, calafate e pintagol. Agora, em sua casa restam apenas dois pés de manga e um de condessa. Já Arnaldo Mariano Arcanjo, 31, foi listado como desaparecido na sexta-feira porque voltou diversas vezes ao povoado para buscar pessoas que ficaram presas na lama, como Priscila Monteiro Isabel, grávida, e seu filho de 2 anos. Passou a madrugada buscando salgadinhos e biscoitos em um bar inundado para compartilhar com as famílias que ficaram ilhadas.

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Keila Vardele Sialho, de 31 anos, conta que preparava o jantar quando seu tio apareceu na porta gritando: “Corre que a barragem estourou”. O que se seguiu foi uma típica cena de filme-catástrofe. “Correria, gritos, choro em todos os cantos. Todo mundo correndo, idoso, criança… Olhava para trás e via aquele mundo de lama vindo de todos os lados, como se estivesse abraçando a gente. O barulho era ensurdecedor”. Ela saiu em disparada atrás dos dois filhos e da avó, de 85 anos, que mal conseguia andar. Encontrou no caminho o sogro, que circulava pelas ruas recolhendo as pessoas em sua caminhonete. Ele resgatou seus familiares e quem mais viu pela frente. “Fui puxando um monte de gente para cima do carro. Nossa preocupação era salvar todo mundo”. Junto com um ônibus metropolitano e um caminhão de mudanças, a caminhonete seguiu para o ponto mais alto do vilarejo. Atrás dos sobreviventes, um cenário desolador: uma avalanche de lama cobriu o vilarejo, arrastando árvores, rochas, postes, carros, caminhões, casas, animais e tudo o que havia pela frente.

Keila e mais sete mulheres do vilarejo trabalhavam com um produto típico da região, a geleia de pimenta biquinho. Elas atuavam em todas as etapas de produção, da plantação à comercialização do produto final. O empreendimento fazia parte dos projetos sociais da Samarco, responsável pelas barragens que se romperam. “O que a gente plantou foi tudo embora. Só sobrou o prédio da associação, que ficava na parte alta”. Como boa parte dos vizinhos, ela saiu de casa só com a roupa do corpo. Perdeu todos os pertences e documentos. “A coisa mais valiosa era uma foto da minha mãe. Ela morreu da doença de chagas, quando eu tinha 9 meses. E aquele foto era a única lembrança que eu tinha dela”.

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Marcilene da Conceição Pereira, de 28 anos, conta que assistia a uma novela com os pais quando eles ouviram o barulho. Achavam que alguém estava pondo fogo na mata. Saíram para conferir e avistaram a onda de lama. Só houve tempo para que a família corresse. Vítima de lúpus há sete anos, Marcilene faz uso de muletas. Sequer conseguiu levá-las.

Pouco mais de uma semana depois da tragédia, ainda não se sabe o que provocou o rompimento das barragens. Uma resposta satisfatória não deve ser obtida antes dos próximos seis meses. As 185 famílias estão hospedadas em diversos hotéis de Mariana e tentam recomeçar. Os alunos do ensino fundamental devem voltar às aulas a partir de segunda-feira, na Escola Dom Luciano, em Mariana. As mesmas 50 professoras de Bento Rodrigues lecionarão no novo local. Já os jovens que cursam o Ensino Médio em distritos vizinhos aguardam a definição sobre como será feito o transporte até as escolas.

“O objetivo é manter essa comunidade unida”, afirma o promotor de Justiça da comarca de Mariana, Guilherme Meneghin. “Depois de tudo que vivemos, nós queremos ser uma vila de novo.”, resume Cleonice dos Santos. Mas não em Bento Rodrigues. Ainda que haja possibilidade de reconstrução do vilarejo, os moradores não querem voltar. O clima de medo impera, sobretudo porque ainda há uma barragem sobre a região que abrigava o povoado.

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Desastre econômico

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(Divulgação/Divulgação)

Tragédia em Mariana põe fim à onda de boas notícias que cercavam a mineradora Samarco, prejuízo pode ultrapassar a marca de 1 bilhão de reais

Por Eduardo Gonçalves

Até 5 de novembro, boa parte da população talvez jamais tivesse ouvido falar na mineradora Samarco, uma joint venture da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. Responsável pelas barragens que romperam na cidade mineira de Mariana, provocando a maior tragédia ambiental da história do Estado, a empresa de 37 anos era considerada um exemplo de sucesso no setor. Num ano marcado pela desaceleração econômica e pela queda no preço das commodities, a Samarco aparece no topo de basicamente todos os rankings que avaliam lucros, margem e receita líquida das empresas do país.

Em 2014, companhia fechou o ano com um faturamento de 7,5 bilhões de reais, o que lhe rendeu um lucro líquido de 2,8 bilhões de reais. Com uma cadeia de fornecedores em dezenove países, a empresa produz cerca de 30,5 milhões de toneladas de pelotas de ferro por ano. Material, após passar por um processo químico, vira aço. Seu presidente, Ricardo Vescovi de Aragão, estava entre os representantes de vinte das maiores empresas do Brasil com negócios na Alemanha, recebidos pela presidente Dilma Rousseff em agosto deste ano.

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A onda de boas notícias, contudo, se foi com o mar de lama despejado das barragens de Fundão e Santarém, da mina de Alegria, sobre os vilarejos de Mariana. O distrito de Bento Rodrigues, o mais próximo da barragem, com seus mais de 300 anos de história, desapareceu da região. Sua vegetação, casas, igrejas, escola, e moradores foram arrastados pela violência da enxurrada de resíduos de mineração. No dia seguinte ao desastre, Vescovi já classificava o incidente como o mais grave da história da empresa. A onda de lama avançou sobre os rios da região, privando por dias centenas de milhares de pessoas do abastecimento de água.


Imagens de satélite da região de Bento Rodrigues, em Mariana (MG) (Digital Globe/Global Geo/Reprodução)

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Um desastre dessas proporções não demorou a respingar no caixa da empresa. No dia seguinte ao evento, as ações da Vale despencaram 7,5%, puxando a Bolsa de Valores de São Paulo para uma queda de 2,35%. Na bolsa de Sidney, os papeis da BHP recuaram 2,5%. No mesmo dia, a agência de classificação de risco Fitch colocou em perspectiva negativa a nota de crédito da Samarco.

O executivo-chefe da BHP, Andrew Mackenzie, não demorou a pegar um avião e embarcar para o Brasil. Chegou a se manifestar sobre o assunto antes do presidente executivo da Vale, Murilo Ferreira, o que rendeu críticas ao colega brasileiro, Ferreira, Mackenzie e Vescovi deram uma coletiva à imprensa na quarta-feira. Na ocasião, deixaram claro que a Samarco é uma empresa “independente” e que ofereceram todo o suporte solicitado. Também evitaram falar sobre números, mas especialistas já falam em um prejuízo da ordem de 1 bilhão de reais.

“Se a empresa não conseguir pagar todo o dano causado com o dinheiro em caixa e com os bens que ela tem, vai haver desconsideração da personalidade jurídica e, tanto a empresa australiana quanto a Vale terão seus bens bloqueados para garantir esse pagamento”, afirma o presidente da comissão de Meio Ambiente da OAB de Minas Gerais Mario Werneck. A Justiça de Minas Gerais bloqueou na sexta-feira 300 milhões do caixa da Samarco para garantir o pagamento das indenizações às vítimas da tragédia.

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