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A colossal restauração de ‘Independência ou Morte’, de Pedro Américo

A mãe de todas as telas passa por um processo para trazer à tona as cores vivas originais

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h19 - Publicado em 3 abr 2022, 08h00
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  • Não aconteceu exatamente como Pedro Américo (1843-1905) retratou no imenso Independência ou Morte (1888). Eternizado pelo pintor brasileiro, o gesto seguinte ao brado retumbante foi, na realidade, bem menos grandioso. Naquele 7 de setembro de 1822, dom Pedro, então príncipe regente, voltava de uma viagem a Santos quando parou próximo do Riacho do Ipiranga. Havia razões íntimas e inconfessáveis: ele estava indisposto, com dor de barriga. Montado em uma mula baia, melhor animal para vencer as condições do terreno na época, o monarca precisava se aliviar. De acordo com relatos de integrantes da comitiva, depois de fazer uma visita à mata, estava no alto da colina quando recebeu mensageiros vindos do Rio de Janeiro. As cartas do ministro José Bonifácio e da princesa Maria Leopoldina diziam que a Corte portuguesa encontrava-se muito próxima de devolver o Brasil à condição de colônia, e não mais de reino, e que ele estava fadado a ser destituído de sua posição. Após jogar a papelada no chão e trocar algumas palavras com os mais próximos, dom Pedro proclamou o país, para sempre, separado de Portugal.

    O épico grito “Independência ou morte”, relatado por apenas uma das testemunhas que acompanhavam dom Pedro, foi uma fantasia que se perpetuou no título da pintura de Pedro Américo. Dela se espalhou nos livros de história do Brasil e chegou ao filme de 1972 em que Tarcísio Meira dá vida a um enfurecido príncipe regente. Depois de quase quatro anos, incluindo o hiato em que os museus públicos foram fechados em razão da pandemia de Covid-19, a mãe de todas as telas e de todas as impressões equivocadas, de 4,15 por 7,60 metros, está prestes a ter mais uma restauração completada. Nesta semana, uma mão de verniz de última geração selará o trabalho conduzido pela arquiteta Yara Petrella ao longo de pouco mais de seis meses. A restauração da icônica obra faz parte do projeto de reforma e ampliação do Museu do Ipiranga, desenvolvido desde outubro de 2019 a um custo de 211 milhões de reais — em patrocínios promovidos pela Lei de Incentivo à Cultura, aportes diretos e verba do governo. A ideia é entregá-­lo à população nas comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, em setembro.

    Encomendada em 1886 pelo governo imperial brasileiro, a tela foi pintada por Américo em um estúdio em Florença, na Itália. Concluída em 1888, embarcou para o Brasil devidamente enrolada, com a moldura (também projetada pelo artista) desmontada. Ao chegar, seguiu para o salão nobre do Museu Paulista, nome oficial do Museu do Ipiranga, que seria inaugurado e aberto ao público somente em 1895. Uma vez montada, tornou-se uma das principais atrações do acervo e nunca mais foi removida de seu lugar. Para o trabalho de agora, a equipe de restauradores decidiu mantê-la onde estava. Castigada pela ação do tempo, pelo acúmulo de sujeira e com as cores alteradas por intervenções passadas, a pintura passou por uma recauchutagem completa. No processo, o verniz antigo que imprimiu o tom levemente amarelado foi removido, assim como a poeira e outros pequenos detritos acumulados. A parte mais deteriorada, o céu no canto superior esquerdo, estava com a tinta se desprendendo. “Removemos tudo que cobria a fina camada pictórica, nivelamos a pintura nas partes afetadas e preenchemos o que havia sido perdido”, explica Yara Petrella, que liderou a restauração. “O que veio à tona foram as cores vivas, muito próximas das usadas originalmente por Pedro Américo.”

    A restauração incluiu ainda uma análise química das tintas usadas e uma varredura com luz infravermelha. Ambos os processos permitem traçar a origem dos materiais utilizados por Américo e também a evolução da tela, com a revelação dos “pentimentos” (arrependimentos) do artista, os retoques feitos durante a pintura. Entre outros detalhes, ficou-­se sabendo que o autor mudou a assinatura de lugar (veja no quadro acima). A moldura também foi reconstruída em vários pontos e a folheação de ouro foi refeita.

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    Quando o Museu do Ipiranga for reaberto, essas e outras informações estarão disponíveis visualmente e por meio de um sistema multimídia. “E as trataremos inclusive com o viés crítico, pois é uma imagem icônica, mas interpretativa de um momento factual”, diz Sérgio Sá Leitão, secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. Pedro Américo pode ter pesado a mão nas tintas, mas preservar sua visão do grito da Independência é fundamental como registro de um instante do país, mesmo idealizado e longe do que realmente ocorreu. Mas a restauração traz um ensinamento: é sempre possível corrigir alguma coisa, pequena que seja.

    Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783

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