O consumo de água mineral, hábito cultivado de uns 2 500 anos para cá, ganhou impulso com a invasão da Gália pelos romanos, que ali espalharam seus spas, um deles colado ao museu medieval de Cluny, cujas reminiscências repousam em charmosa região histórica do que é hoje Paris. O líquido era então indicado para o banho, por conter substâncias vistas como preciosas à saúde, e também para ir ao copo, ao lado de uma boa taça de vinho. Muitos e muitos goles depois, no século XVII, Henrique IV, apelidado Vert Galant pela fama de conquistador de corações, pôs ordem na casa e regulamentou tal atividade comercial, que atualmente faz da França a campeã global do produto engarrafado, um mercado na casa de 1,1 bilhão de dólares anuais. Mas as águas delicadamente gaseificadas ao natural têm andado na berlinda, sobretudo a Perrier, aquela da inconfundível garrafa verdinha, patrimônio nacional, agora enredada em uma crise sobre a qual os locais preferem não fazer muito alarde — tudo em nome da tradição.
Tentando se desviar dos holofotes, a Nestlé, multinacional dona da marca, com sede na Suíça, destruiu 3 milhões de embalagens plásticas e fechou dois dos sete poços de extração em Vergèze, no sul do país, pelo que vagamente classificou de “incidente de contaminação”. Os detalhes acabariam vindo à luz, levando muito francês a fazer bico: inspetores identificaram “bactérias de origem fecal” imersas naquelas tão cultuadas fontes. A Nestlé se apressou em lançar a culpa nas corriqueiras tempestades que assolam a região, fruto das mudanças climáticas. O toró que vem e vai seria o motivo também da instabilidade na qualidade do Sena, o rio que serpenteia a Cidade Luz e que, mesmo sob a promessa de balneabilidade, ainda não foi liberado para o aspirado mergulho. Em ambos os casos, sabidamente a natureza tem sua cota nos indesejáveis desdobramentos, mas há muitos outros fatores no balaio da poluição. No caso da Perrier, por razões ainda misteriosas, os poços seguem inativos meses após o temporal, e a produção já despencou.
O caso que tomou dimensão de escândalo vem sendo encarado por especialistas como a ponta de um iceberg numa indústria que não raro é confrontada com a pouca transparência. Em 2023, o vazamento de um relatório conduzido por uma alçada do governo federal encarregada do monitoramento das águas mostrou ser ainda mais funda a fonte do enrosco: amostras de Perrier revelaram ali vestígios de pesticidas vetados havia mais de três décadas, já que se associavam à ocorrência de câncer. E o zum-zum-zum não termina. Um ano antes, o mesmo órgão, ligado ao Palácio do Eliseu, averiguou que 30% de toda a produção do setor era submetida a técnicas de filtragem com carvão ativado e luz ultravioleta, algo à época proibido. A regra era clara: para ser água mineral, o líquido não poderia, sob nenhuma hipótese, passar por qualquer processo físico ou químico.
A denúncia se estendeu a outras fabricantes, como a Alma, à frente da Cristaline e da Chateldon, e obrigou a Nestlé, que abarca sob seu guarda-chuva a Hépar e a Vittel, a desembolsar, semanas atrás, 2,2 milhões de euros para pôr um ponto-final no processo movido por entidades de defesa do consumidor que acusam a companhia de fraude. “O uso intensivo de água mineral engarrafada pode expor consumidores a substâncias nocivas”, alertou Amit Abraham, autor de um estudo científico publicado pela BMJ Global Health. Nos bastidores do poder, uma operação-abafa transcorreu em paralelo, com o Ministério da Saúde, cioso dos bilionários números em jogo, recusando-se a se pronunciar, com a justificativa de que a contenda está sob investigação judicial. Uma vitória para a borbulhante indústria veio em seguida: a filtragem acabou sendo liberada em decisão interministerial, com o argumento de que, no novo cenário climático, é medida necessária, frente à instabilidade dos lençóis freáticos, e não representa riscos.
Não é a primeira vez que a Perrier se vê enroscada em um enredo sem glamour. Em 1990, a contaminação por benzeno fez a marca ter de descartar 160 milhões de garrafas em 120 países. Uma ala de especialistas lembra que, em uma década, o quadro de inspetores minguou 20%, o que embute a preocupação de comprometer a elevada régua francesa. Historicamente, a primeira a engarrafar o líquido foi a suíça Evian, mas logo depois, em 1863, a ideia se disseminou com o selo Perrier — chamada de “champanhe das águas”.
Em 1968, a migração para embalagens plásticas fez o negócio disparar: somando-se todas as variedades, 1 milhão de garrafas são vendidas por minuto no planeta. Como 97% delas são plásticas, está posta à mesa uma outra ruidosa polêmica ambiental. “Elas demoram até 700 anos para se decompor”, afirma Zeineb Bouhlel, do Instituto de Meio Ambiente e Saúde da ONU. A Perrier garante que é tudo pontual no atual quiproquó e que investe firme em reciclagem. Há saída? Um passo é fazer propaganda. A marca que estufa o orgulho francês contratou como garota-propaganda a atriz Lily Collins, protagonista de Emily in Paris, série que cutuca a cultura local sob o olhar americano. Está valendo tudo e mais um pouco para manter as cifras borbulhantes.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916