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A farsa por trás de manuscrito atribuído a Galileu

Dono de extensa ficha corrida, malandro carcamano também forjou documentos escritos por George Washington, Cristóvão Colombo e Leonardo da Vinci

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h24 - Publicado em 28 ago 2022, 08h00

Um manuscrito atribuído a Galileu Galilei (1564-1642) sempre foi considerado uma das joias da Biblioteca da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Fora doado em 1938, depois da morte do empresário americano Tracy McGregor, ávido colecionador de livros e documentos. Quatro anos antes, McGregor o comprara em um leilão do espólio de outro milionário aficionado por papéis antigos e primeiras edições. Veio autenticado por um cidadão acima de qualquer suspeita, o cardeal Pietro Maffi (1858-1931), arcebispo de Pisa, que teria comparado a caligrafia com outros escritos do astrônomo italiano em sua coleção pessoal. Quase um século depois, contudo, descobriu-se agora que o documento não passa de falsificação ordinária, atribuída ao vigarista italiano Tobia Nicotra. Dono de extensa ficha corrida, o malandro carcamano forjou, no início do século passado, documentos escritos por George Washington, Cristóvão Colombo e Leonardo da Vinci, entre outros.

Era muito bom para ser verdade. Na metade superior, o suposto manuscrito de Galileu contém o rascunho de uma carta ao doge de Veneza, datada de 24 de agosto de 1609, para apresentar ao nobre um telescópio recém-construído. Na metade inferior, há notas esparsas com observações das luas de Júpiter, feitas entre 7 e 15 de janeiro de 1610. “É um documento duplo, ambos de registros valiosos, mas a chance de estarem em um mesmo pedaço de papel é ridiculamente pequena”, disse a VEJA Nick Wilding, professor de história da Universidade do Estado da Geórgia, que revelou a contrafação. Ele descobriu a farsa ao examinar o papel em questão para uma biografia que está escrevendo sobre o gênio toscano. Também foi ele quem associou a forja a Nicotra. A versão completa e genuína da carta é mantida no Arquivo do Estado de Veneza e as notas autênticas fazem parte do Dossiê Sidereus Nuncius, na Biblioteca Nacional Central de Florença.

Wilding suspeitou da uniformidade da tinta e da largura da pena usadas no suposto manuscrito. Se fossem escritos com meses de intervalo, Galileu deveria ter usado tinta e pena diferentes. Mas o documento parece ter sido composto de uma só vez, com os mesmos materiais. Além disso, uma análise atenta da caligrafia mostrou erros gramaticais, algo que o autor não faria. O professor também comparou as anotações astronômicas com o dossiê depositado em Florença e notou contradições. Por fim, a marca-d’á­gua indica que o papel foi produzido no fim do século XVIII, muito depois das datas inscritas. Relacionar o documento a Nicotra foi fácil. É sabido que o falsificador doou duas supostas cartas de Galileu ao cardeal Maffi nos anos 1920. “A nota de autenticação do arcebispo de Pisa deve ter sido forjada por ele”, disse o americano. “Portanto, todo o contexto e as habilidades apontam para o vigarista.”

Galileu não foi a única “vítima” de Tobia Nicotra. O embusteiro italiano, um personagem furtivo sobre o qual se sabe muito pouco — tanto é assim que jamais permitiu ser fotografado —, ficou famoso no início dos anos 1930, quando foi para os Estados Unidos e se fez passar pelo maestro italiano Riccardo Drigo, que havia sido diretor musical do Balé de São Petersburgo. Personificando Drigo, Nicotra fez uma pequena turnê musical e até deu entrevistas em rádios. Ocorre que o maestro, o verdadeiro, havia morrido dois anos antes. Nesse mesmo período, ele se aproximou de Walter Toscanini, filho do compositor italiano Arturo Toscanini, maestro da Filarmônica de Nova York, a quem vendeu um autógrafo de Wolfgang Amadeus Mozart pelo equivalente a mais de 500 dólares. A Biblioteca do Congresso também comprou dele documentos que atribuía a Mozart por valores parecidos.

Reza a lenda, se non è vero, è ben trovato, que Nicotra começou a carreira nos anos 1920, em Milão, vendendo autógrafos, cartas, documentos e partituras falsas para manter sete amantes simultâneas em apartamentos espalhados pela cidade — além da própria mulher. Ele frequentava a seção de livros raros da Biblioteca Municipal, arrancava as folhas de guarda dos volumes mais antigos e trabalhava sobre esses papéis. Em novembro de 1934, foi condenado na Itália a dois anos de prisão e uma multa em dinheiro. O filho de Toscanini, que denunciou o impostor e ajudou a localizá-lo, testemunhou contra ele. Ao fazer uma busca em seu apartamento, a polícia achou alguns “trabalhos em progressão”, assinaturas e textos de Abraham Lincoln, Warren G. Harding, Marquês de Lafayette, Martinho Lutero, Lorenzo, o Magnífico e Michelangelo. Nunca mais se ouviu falar de Nicotra. Sua obra, por assim dizer, continua viva.

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ALVOS DO EMBUSTE
Personalidades históricas que o impostor italiano falsificou

Torquato Tasso (1544-1595) -
Torquato Tasso (1544-1595) – (De Agostini/Getty Images)

Para testar suas habilidades, o falsificador escreveu um poema imitando Torquato Tasso (1544-1595) e o levou a especialistas que o autenticaram e elogiaram os versos

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Georg Händel (1685-1759)
Georg Händel (1685-1759) – (De Agostini/Getty Images)

Com Georg Händel (1685-1759), o contraventor italiano foi ousado: forjou partituras de duas obras, uma ária do período italiano do compositor e uma parte do clássico O Messias

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) – (A. Dagli Orti/De Agostini/Getty Images)
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O falsário lucrou com Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), cujas assinaturas forjadas foram vendidas a celebridades e à Biblioteca do Congresso dos EUA

Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804

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