Desde pequeno, tinha a sensação de ser diferente. Meus pais nunca tentaram mudar quem eu era — um menino que gostava de coisas de meninas, como ainda se fala por aí. Mas os olhares de julgamento sempre me cercaram. Tentei me esconder e cheguei a namorar uma garota. Apenas aos 20 anos, resolvi viver de forma livre e autêntica. Tive medo da reação das pessoas, claro. Foi para minha cunhada e uma prima que contei pela primeira vez a verdade com todas as letras: “Sou gay”. Elas me ajudaram a reunir coragem para ter a dura conversa com minha mãe, que reagiu bem. Começou a me fazer um monte de perguntas e, pouco a pouco, os outros ficaram sabendo. Num desdobramento natural, entenderam que meu colega de quarto não era só um amigo, mas meu namorado, com quem eu viria a casar em celebração simbólica a dois, cinco anos mais tarde. No início de 2024, decidimos, enfim, comemorar com amigos e familiares. Aí me vi face a face com o preconceito e a intolerância em seu estado mais bruto e perverso.
Como produtor de eventos, logo comecei a me envolver com os preparativos da festa. Caí de cabeça na organização e passei a fazer contato com fornecedores os mais diversos em São Paulo, onde moramos. Para os convites, disparei mensagens para diferentes gráficas e, no dia seguinte, veio a resposta de uma delas. A atendente foi muito simpática, mas o tom mudou completamente quando descobriu se tratar de um casal gay. Mandei nossos nomes, e ela parou de responder. Devia estar ocupada, pensei. Horas mais tarde, o motivo do sumiço ficou bem claro. “Peço desculpas por isso, mas nós não fazemos convites homossexuais”, ela escreveu. E assim encerrou a conversa, me deixando chocado e sem chão. Só me restou chorar, e chorar muito.
Expliquei a situação a meu marido, Wagner (Cardoso, no porta-retratos acima), que é chef e dono de um bufê. Concordamos em elaborar um texto em repúdio e enviar à mulher que nos havia maltratado. Dissemos ali que nenhuma empresa jamais poderia ter um comportamento discriminatório. Enfatizamos que a homofobia é crime e que levaríamos a questão à Justiça. Foi um susto quando vimos circular no Instagram deles, pouco depois, uma nota nos atacando diretamente. Diziam que acreditavam na “família como ela é” e citavam o versículo da Bíblia sobre como Deus criou um homem e uma mulher. Não satisfeitos, divulgaram meu número de celular. Mostrei a uma amiga, que tomou a iniciativa de postar o absurdo, e a história viralizou. Como a empresa virou alvo instantâneo de críticas, apagou o conteúdo, mas já havia prints da tela por todo lado.
O Estado é laico e garante que os indivíduos sejam tratados em pé de igualdade, independentemente de raça, religião ou orientação sexual. Num cenário tão polarizado, era esperado que o pronunciamento da gráfica colhesse apoio de figuras como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que disse aos donos da empresa para que permanecessem “firmes”. Com tantas mazelas no país, é revoltante que a atenção de alguns políticos esteja voltada para a homossexualidade alheia. Mesmo com os ataques que recebi, também senti na pele, em grau ainda maior, a solidariedade. Casais gays entraram em contato conosco e relataram histórias parecidas. Fornecedores de convites apareceram aos montes, querendo fazer o nosso. Advogados também se ofereceram para nos defender. Escolhemos uma equipe especializada em casos como este, entramos com ações judiciais nas três esferas — civil, criminal e administrativa — e registramos a ocorrência. Infelizmente, a homofobia segue enraizada no Brasil e isso me traz muita dor. Que histórias como a nossa, ao menos, ajudem a fazer pensar e a semear a tolerância.
Henrique Nascimento em depoimento dado a Paula Freitas
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893