Um notável avanço do século XXI foi ver aflorar mundo afora um debate dos mais delicados, daqueles que se costumava varrer para debaixo do tapete: a descriminalização das drogas. É questão controversa, cheia de nuances, que deve ser mantida a salvo de ideologias para se fincar na ciência e na experiência de países que, com cada vez mais frequência, vêm flexibilizando o uso de entorpecentes justamente com o objetivo de minimizar seus danos. Na última década, nações como Uruguai, Canadá, México e África do Sul liberaram o consumo da maconha — passo dado de forma pioneira na Holanda, nos anos 1970, e aprofundado com tintas nunca antes vistas em Portugal, em 2001, onde portar outras substâncias, como cocaína, heroína e LSD, também deixou de ser crime.
Foi por essa trilha mais radical que enveredou o Oregon, estado da Costa Oeste americana que, em 2020, cravou em plebiscito que usuários de todas as drogas, até mesmo dos devastadores opioides, não poderiam mais ser detidos. Toda a literatura corrobora que os efeitos da medida tendem a ser benéficos sob muitos ângulos — a começar pela própria saúde dos indivíduos que penam com o vício. Mas naquele ponto específico dos Estados Unidos, conhecido pela bela paisagem e o acentuado progressismo, a receita desandou e, agora, se ensaia uma volta atrás que torna obrigatória uma nova reflexão sobre tão candente assunto.
O sinal amarelo no Oregon se acendeu quando a descriminalização passou a colher efeitos avessos ao esperado — com o consumo em alta, as mortes por overdose escalaram 42% em 2023, puxadas pela explosão do fentanil, o letal opioide. Também as ruas foram tomadas de gente usando drogas, uma deprimente paisagem na qual a incidência de pequenos crimes não para de crescer. Debruçada sobre tais desdobramentos, a Assembleia Legislativa local acaba de aprovar um projeto de lei que propõe uma marcha a ré — não completa, mas suficiente para alterar a essência do plano original. A ideia, ainda a ser chancelada pela governadora democrata Tina Kotek, é dispor de um concreto mecanismo de estímulo ao tratamento: ou o usuário engata nos programas em centros especializados, ou fica passível de reclusão de até 180 dias. Não é o mesmo que antes, quando, por princípio, tudo conduzia à prisão, abarrotando as celas de indivíduos que, na verdade, requeriam cuidados médicos. Mas, certamente, regressa algumas casas na escala da liberalidade. “Não dá para deixar de responsabilizar as pessoas”, já disse a governadora.
Em um roteiro previsível, o caso do Oregon logo deu carga à artilharia de conservadores prontos para minar o debate, disparando argumentos sem envergadura histórica nem verniz científico. O vasto conhecimento acumulado sobre o polêmico tópico mostra que abordá-lo unicamente sob a lupa da segurança, tendo no usuário um criminoso, quase sempre faz aumentar a incidência do vício, já que espanta as pessoas das engrenagens públicas que poderiam ajudá-las. Descriminalizar, portanto, vem se revelando um caminho acertado, desde que o Estado não saia de cena, como se observou no Oregon. Um mergulho no exemplo português, que contabiliza duas décadas de estrada, enfatiza a necessidade de zelar para que a decisão de transferir responsabilidades aos cidadãos não desande. Ali, implantou-se um sistema de fichamento, que, embora não mire o encarceramento, registra o nome do usuário num banco acessado por empregadores, por exemplo, e o encaminha a comissões de saúde, para que receba suporte médico.
Como nada é trivial nesse terreno em que as sociedades ainda aprendem a caminhar, também Portugal, onde a descriminalização das drogas contribuiu para uma bem-vinda redução do contingente carcerário, da taxa de transmissão de HIV e das mortes por overdose, está às voltas com uma discussão sobre como lapidar suas iniciativas. Nos últimos anos, o uso de entorpecentes vem se expandindo e isso ecoa no avanço da criminalidade, um ciclo que atormenta em grau semelhante vizinhos como Suécia, Noruega e a pioneira Holanda. “A dependência das drogas não deve ser tratada exclusivamente como um problema de saúde, uma vez que se reflete profundamente na segurança da população”, ponderou a VEJA o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, que, além de defender o investimento em instalações para o tratamento, considera razoável delimitar locais onde tais substâncias podem ser consumidas, longe de escolas e hospitais — como já ocorre em tantos países, como o Canadá, outro que trilha a rota da descriminalização.
Um rol de nações tem testado um percurso ainda mais amplo ao legalizar a cadeia produtiva da droga, em especial a da maconha. O objetivo embutido aí é não replicar o enredo holandês — uma vitrine, aliás, sobre o que fazer ou não nesses mares em que eles já navegam há meio século. O que se viu por lá é que liberar o consumo e a venda de drogas, mas manter proibido o plantio, acabou por colocar o fornecimento nas mãos do tráfico internacional, fazendo multiplicar-se as gangues, que se infiltram por entre as brechas para comercializar substâncias mais pesadas. Por isso, países como Tailândia e Uruguai, assim como a cidade de Nova York, regulamentaram o mercado, concedendo licenças de cultivo a produtores e empresas. Dessa forma, passaram a amealhar altas somas num negócio antes sob absoluto domínio do tráfico. A virada, porém, não se dá da noite para o dia — depois de uma década, a ilegalidade em solo uruguaio segue respondendo por 70% do bolo. Para o Brasil, ainda no ponto inicial da discussão, que corre no STF e no Congresso, vale um olhar livre de prejulgamentos sobre como o mundo anda girando e avançando em torno do bom debate.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886