“A música me escolheu”
Como a brasileira Gabriella Di Laccio superou preconceitos para se tornar uma das estrelas mundiais da ópera

Mesmo sem artistas na família (sou filha de uma nutricionista e de um mecânico que me criaram nos arredores de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul), me apaixonei pela música erudita aos 8 anos, quando entrei para o coral da escola. Nunca mais parei, mas pensava que seria apenas um hobby. Meu futuro estaria na arquitetura, que comecei a cursar. Algo, porém, mudou na formatura da minha irmã, onde me apresentei, ao cantar para uma plateia lotada, aos 19 anos. Foi como se a música me escolhesse. Decidi trancar a faculdade, me mudei para Curitiba e passei a estudar com Neyde Thomas, uma das maiores sopranos do país. Um tanto impulsiva, a decisão foi o primeiro passo de uma longa trajetória que, anos depois, me levaria a receber um dos mais altos títulos do Reino Unido: o de Membro da Ordem Mais Excelente do Império Britânico — ou MBE.
Inicialmente, sair do Brasil não estava em meus planos. Comecei a cogitar essa possibilidade após ouvir de um maestro inglês que, se quisesse crescer de verdade, teria de estudar fora. Abracei o desafio e cheguei a Londres com 20 anos. Tinha pouco dinheiro, um inglês bem básico, mas enorme vontade de aprender. Não demorou muito para eu sentir o que significa ser uma artista estrangeira. Muitos me associavam aos estereótipos de Carnaval, futebol e sensualidade. Nada a ver com a almejada carreira de cantora lírica. Nos primeiros seis meses, chegava em casa e chorava, me sentindo burra por não conseguir me comunicar como gostaria. Para me encaixar no molde britânico, acabei, por um tempo, apagando minha essência. Foram anos de frustração até que uma professora do Royal College of Music, de Londres, me mostrou que minhas diferenças eram, na verdade, meu maior diferencial.
Um dia encontrei, por acaso, um livro antigo listando 6 000 compositoras da história da música clássica. Embora já fosse experiente, notei que não conhecia quase nenhuma, o que me deu raiva e vergonha. Como era possível que tantas vozes fossem apagadas? Comecei a investigar e me tornei obcecada por tornar esses nomes visíveis. Foi assim que, em 2018, criei a Donne — Women in Music, uma fundação dedicada a ampliar as oportunidades para as mulheres no cenário musical. O primeiro passo foi publicar uma lista das compositoras de todos os cantos do mundo. Não esperava tanto sucesso. Em pouquíssimo tempo, artistas de diversos países começaram a me escrever pedindo para serem adicionadas na “big list”. Desde então, o projeto só cresceu, firmando parcerias com instituições como a Universidade de Oxford e o Royal Albert Hall. Em 2024, realizamos um concerto de mais de 26 horas com obras de 140 mulheres e pessoas não binárias, registrado pelo Guinness como a mais longa apresentação acústica transmitida ao vivo. Ainda me emociono ao recordar o alcance da iniciativa.
Nada me surpreendeu tanto, contudo, do que uma carta da realeza, que chegou pelo correio, com o brasão oficial e os dizeres “a serviço de Sua Majestade”, me informando que tinha ingressado na MBE. De tão nervosa, rasguei o envelope. Foi como se minha carreira passasse diante dos olhos. Agora, assino meu nome acompanhado dessa sigla, mas o que realmente almejo é que o título sirva como um amplificador para outras vozes femininas. Ainda não valorizamos a música escrita por mulheres, e muitas compositoras seguem à margem do mercado. Se essa homenagem abrir portas para elas, já terá cumprido sua missão. Ingressei em um doutorado na Universidade York St John para seguir com minha pesquisa e sonho que as próximas gerações de meninas cresçam sabendo que há lugar para elas nos palcos e nas partituras. Até lá, sigo cantando, lutando e acreditando que cada nota pode trazer uma transformação.
Gabriella Di Laccio em depoimento a Sara Salbert
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955