O prazer de guiar um carro, de preferência em alta velocidade e com motor potente, seduziu diferentes gerações no último século. A humanidade desenvolveu formas de locomoção, como o uso de cavalos e bicicletas, de modo que as ferramentas se tornassem uma extensão de sua consciência — tal qual uma prótese, como argumenta o escritor americano Matthew Crawford no livro Why We Drive (Por que Dirigimos, lançado nos Estados Unidos em 2020). O avanço tecnológico, no entanto, vai na contramão dessa simbiose e inibe cada vez mais a conexão entre homem e máquina. O iminente fim do pedal de embreagem, com o adeus às marchas de câmbio, é prova disso — e o ser humano já não controla um veículo como antes.
Em cinco anos, o emplacamento de modelos manuais no Brasil caiu de 57% para 38%, segundo a Bright Consulting. As explicações são essencialmente econômicas, pois a maioria dos carros de entrada já oferece o recurso. “No início, os automáticos eram bem mais caros e apresentavam mais problemas de manutenção, mas isso está completamente superado”, diz Cássio Pagliarini, consultor da Bright. Ele cita como momento de virada o lançamento do Hyundai HB20, em 2012. “O preço começou a ficar mais palatável e o câmbio automático se popularizou também entre os jovens.”
Apesar do avanço, o Brasil ainda é um dos países com maior frota mecânica, também por razões financeiras, já que a inflação fez explodir a busca por usados e modelos com motor 1.0. Nos EUA, veículos do tipo têm vendas ínfimas e já é possível tirar habilitação exclusiva para automáticos — um projeto semelhante tramita em Brasília. Na Europa, a tradição também se esvai. As alemãs Volkswagen e Mercedes devem extinguir os carros manuais até 2030 e dar prioridade total à produção de híbridos e elétricos.
Curiosamente, a história dos carros automáticos passa por dois brasileiros. José Braz Araripe e Fernando Lemos são reconhecidos como os inventores de um tipo de câmbio hidráulico, o primeiro a dispensar o uso do pé esquerdo para dirigir. A patente do projeto foi registrada nos EUA em 1932 e comprada na sequência pela General Motors, que em 1939 lançou o pioneiro modelo Oldsmobile 1940. Os automáticos, portanto, existem há oito décadas, mas o mercado demorou a acelerar. Além dos convencionais, cresce a procura por modelos CVT (transmissão continuamente variável), que não possuem marchas pré-definidas, operam de forma mais suave, sem trancos, e podem ser tão econômicos quanto um manual. Há ainda o tipo dual clutch, de dupla embreagem, encontrado em carros mais velozes, como Ferrari e Porsche. Diversos automáticos oferecem a troca de marchas por meio de “borboletas” no volante, o que ameniza a suposta falta de controle.
Além de acabar com o inconveniente de mudar as marchas em engarrafamentos, os automáticos oferecem recursos como direção hidráulica, freio ABS e injeção eletrônica. “Eles trazem mais segurança e eficiência”, pondera Flavio Padovan, sócio da Padovan Consulting. “Quem experimenta um automático dificilmente volta atrás.” Alguns motoristas, porém, resistem. O piloto Djalma Fogaça, 59 anos, campeão brasileiro de Fórmula Ford e Chevrolet, busca refúgio na Copa Truck, uma das raras competições esportivas a manter a troca manual de marchas. “Essa sensação de efetivamente sentir e guiar o caminhão é o que me dá prazer”, diz Fogaça.
Para os tradicionalistas, o pior ainda está por vir: num futuro não tão distante, são os volantes que tendem a desaparecer. Carros autônomos possibilitarão a seus donos permanecer passivos no banco de trás, como em um táxi, mas sem condutor. É caminho sem volta, fenômeno já escancarado fora da indústria automotiva. Descargas de vasos sanitários, por exemplo, já são acionadas por sensores e plataformas de streaming indicam ao usuário o que ele gostaria de assistir, com base em algoritmos. Em suma, comodidade é sempre bem-vinda, mas será que ainda restará no futuro algum prazer em dirigir?
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804