Bares voltados para a audição de boa música ganham espaço no país
Com sistemas de som de primeira e menus variados de coquetéis, eles avançam em diversas cidades
Antes de se tornar o escritor japonês mais lido do mundo, eterno candidato ao Nobel de Literatura, Haruki Murakami teve um bar chamado Peter Cat. Obcecado por gatos e jazz, não necessariamente nessa ordem, ele juntou as duas paixões em um pequeno espaço sem janelas e meio sujo em Kokubunji, nos arredores de Tóquio. Durante o dia, Murakami e a mulher serviam café. Quando o sol caía, ofereciam comidas e coquetéis para os clientes. Nos finais de semana, organizavam apresentações ao vivo. No resto do tempo, ele mesmo escolhia a trilha sonora, a partir de um dos mais de 10 000 títulos de sua coleção particular. O negócio não era rentável, mas sobreviveu durante sete anos. Em entrevista ao New York Times, o autor justificou o esforço que fez para manter o espaço: “Ele me permitia ouvir jazz de manhã até a noite”.
A devoção à música, não importa de onde venha — e a adoração pela bossa nova é inegável — faz parte da cultura nipônica. Não à toa, espaços como o Peter Cat são conhecidos como jazz kissa, ou “café de jazz”. São locais a que os clientes vão para ouvir alguma coisa e beber, por vezes muito. O conceito “bares de audição” surgiu ainda na década de 1950, mas ganhou força com o passar do tempo. Em meados de 1970, apenas na cidade de Tóquio havia mais de 250 estabelecimentos do gênero. Nos últimos anos, passou também a inspirar outros bares ao redor do mundo.
A novidade: o modelo ganha tração no Brasil, depois de um tempo de discrição. O fenômeno começou em São Paulo, com o bar Caracol, inaugurado há cinco anos. No ano passado, no entanto, o conceito explodiu. Outras casas abriram, tanto na capital paulista quanto em outras cidades, como o Celeste, no Rio de Janeiro, e o Honey Vox HiFi, em Curitiba. A lista de estabelecimentos cresce, com variações. Algumas casas têm pista de dança. Outras têm mais mesas para o jantar. O Matiz, em São Paulo, mescla apresentações ao vivo e feiras de vinis. “A ideia é fomentar a cultura da música”, diz Yuri Mendonça, um dos sócios do bar. “A reação na pista quando alguém toca com vinil é impagável. É diferente, tem um som muito mais quente, com maior refinamento.”
Quem visita o Domo, localizado na região da Vila Buarque, também em São Paulo, precisa ficar atento para não perder a entrada, facilmente confundida com um dos prédios antigos do local. Dentro, no entanto, há um refúgio para os amantes da música. Atrás do alto balcão do bar há mais de quatrocentos vinis, que ocupam o lugar de destaque normalmente dedicado às fileiras de garrafas. Duas caixas de som, situadas dos lados do balcão, reproduzem com fidelidade os discos escolhidos pelo DJ convidado. A lista muda sempre e contempla tanto nomes nacionais quanto estrangeiros, como o argentino Luis Balcarce, responsável pelo selo independente Queruza. O projeto arquitetônico, pensado a partir das caixas de som, garante a acústica. “Toda a disposição do espaço, da curvatura da estante às placas de absorção, foi pensada para que a sala soasse viva”, diz Rodolfo Herrera, um dos sócios do Domo. “Não queríamos passar a impressão de estarmos em um estúdio, com uma acústica mais seca.”
Algumas adaptações, no entanto, são necessárias para que esses bares funcionem pelas plagas de cá. No Japão, a atenção é toda para os discos. A bebida é acompanhamento relevante, mas não decisivo. Por aqui, embora a música seja protagonista, é preciso garantir que os clientes consigam conversar e encontrem não apenas uma carta de coquetéis, mas também pratos de qualidade. No Domo, há um menu que mistura influências brasileiras e asiáticas assinado pela chef Gabriela Rodrigues. O sucesso desses bares, ressalve-se, não se deve apenas ao ambiente acolhedor ou à boa carta de coquetéis e ao menu variado. Há um interesse genuíno do público em ouvir trilha de qualidade, em toada que fuja do lugar-comum das plataformas de streaming, de mãos dadas com o atual gosto nostálgico pelos bolachões. “As pessoas ficam surpresas com a qualidade do som e com a quantidade de álbuns recentes que são lançados em vinil”, diz Herrera. “Muitos querem ver o disco girando e usam o aplicativo Shazam para descobrir a música que está tocando.” Vale uma frase de Arnold Schoenberg, citada com frequência por Murakami: “A música não é um som, mas uma ideia”.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907