Cada vez mais mulheres optam por não adotar o sobrenome do marido
Trata-se de uma avanço recente nas polêmicas questões de gênero

Cerimônia com convidados, vestido de noiva branco e assinatura de um contrato oficializando o status da relação são costumes relacionados ao casamento que remontam à Grécia de milênios atrás. Vem da mesma época a tradição de a mulher adotar o sobrenome do marido — até porque elas não eram pessoas “completas” e precisavam estar atreladas a um pai ou marido para ser reconhecidas diante do Estado. Com o tempo, a mudança de nome ganhou contornos mais palatáveis, passando a ser vista como uma manifestação de amor, sempre da esposa para o parceiro, sem vice-versa. A ascensão dos ideais feministas e do sentimento de poder entre a parcela feminina da população, no entanto, está mudando esse estado de coisas: levantamento recente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) aponta uma queda de 24% no total de casadas que adotaram o sobrenome do cônjuge, sendo que nos contratos assinados hoje em dia mais da metade opta por manter o nome de batismo.
A liberdade para escolher o nome após o casamento é uma conquista recente no Brasil. Até 1977, quando a Lei do Divórcio foi implementada, a mulher era obrigada a adotar o sobrenome do marido e, em caso de separação — o malfadado desquite —, cabia ao homem autorizar a parceira a retirar o nome dele, a não ser que ela fosse considerada “culpada” pelo fim da união, quando a remoção era automática. A Constituição de 1988 também garantiu a igualdade de gênero em todos os escaninhos da sociedade, inclusive da vida familiar, mas a questão permaneceu sem regulamentação por um bom tempo, porque o Código Civil em vigor, de 1916, ainda colocava os homens em posição de superioridade diante das parceiras.
Só em 2002 um novo Código foi redigido e incluiu o conceito de que homens e mulheres são livres para escolher que sobrenome usarão depois da união. “Até então, as leis refletiam os valores patriarcais do passado. Entendia-se que, ao se casar, a mulher deixava de ser propriedade do pai e passava a pertencer ao marido”, explica a advogada especialista em gênero Mariana Regis. No ano passado, elas puderam cantar mais uma vitória: deixou de ser necessário entrar com um processo judicial para retirar o sobrenome do companheiro após o divórcio. Agora o procedimento é feito em um cartório, sem grande burocracia.

O movimento que põe em xeque a aparentemente inofensiva tradição de a noiva adotar o sobrenome do noivo ganhou força com a intensificação dos debates sobre pautas sociais. Em seu primeiro casamento, em 1994, a defensora pública carioca Adriana Gameiro, 53 anos, se recusou a mudar o sobrenome, mesmo enfrentando resistência do então marido. “Meu nome é uma parte de mim da qual eu nunca me dispus a abrir mão por causa de um romance”, enfatiza Adriana, que está no segundo matrimônio e continua Gameiro, como quando nasceu. “A mulher não aceita mais ser figurante, a esposa de fulano. Ela busca um espaço de protagonismo na sociedade”, diz a socióloga Marcela Castro.
Há também casais que, em vez de expurgar completamente o costume, resolveram adaptá-lo à modernidade. A advogada Carolina Reikdal Conway, 44 anos, conta que, quando decidiram se casar, ela e o parceiro resolveram incorporar o sobrenome um do outro nos documentos. “Entendemos que estávamos formando uma família e era importante criar uma nova identidade. Mas o cartório não está acostumado com esse tipo de dinâmica e tivemos dificuldades no processo”, relata. Segundo os dados da Arpen-Brasil, apenas 7% dos cônjuges decidem fazer a troca mútua de nomes — e essa é uma porcentagem dez vezes maior do que a de homens que adotam unilateralmente o sobrenome da mulher. Para a historiadora Mary Del Priore, apesar dos progressos, ainda existe desigualdade nas questões de gênero. “Mantemos a herança de dar aos filhos só o sobrenome paterno, por exemplo, apagando a linhagem materna da família”, ressalta. À primeira vista, um nome parece mero detalhe. No entanto, ele é capaz, por si só, de marcar uma posição e expressar um avanço da sociedade.
Com reportagem de Mafe Firpo
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826