Céu de brigadeiro: o renascimento da luxuosa primeira classe dos aviões
Ela parecia página virada da história do luxo, mas lançamentos recentes de grandes companhias fazem os ventos mudarem

Ah, como era agradável viajar de primeira classe, para quem tinha dinheiro, é claro. Nos anos 1960 e 1970, na chamada era de ouro da aviação comercial, voar não era apenas entrar em um canudo de alumínio — era também uma experiência de luxo, como em hotéis de cinco estrelas. Contudo, com a constante melhoria das cabines da classe executiva e imperativos financeiros, de modo a ter mais assentos a bordo, a exclusividade foi saindo de cena. A econômica premium virou norma. A indústria de aviação estava fadada a sumir com o glamour. Companhias de prestígio trataram de fazer a mágica ao contrário. Na Qatar Airways, apenas 7% da frota oferece ainda os cantos refinados. Na Air France, o naco é de meros 15%. Na Singapore Airlines, 26%.

Há nos últimos meses — e nas pranchetas dos desenhistas — uma tendência acelerada: o renascimento da primeirona, em travessias que podem custar mais de 24 000 dólares, como o trecho entre Abu Dhabi e Paris pela Etihad. Mesmo as companhias europeias, as pioneiras na rota da austeridade, embicaram em céu de brigadeiro ao relançar as primeiras classes. As novas instalações da Allegris, da Lufthansa, decolaram em fevereiro em oito aviões A350-900, em operação que liga Munique às cidades de São Francisco, Chicago, San Diego, Xangai e Bangalore, na Índia. O produto é um investimento de 2 bilhões de dólares, realizado ao longo de muitos anos para “reinventar completamente a experiência da viagem”, nas palavras de Jens Ritter, CEO da companhia. As cabines têm assentos largos, que viram camas, com temperaturas reguláveis, mesa central de jantar, guarda-roupa e tela de 43 polegadas. Em vez de um ambiente bege acinzentado, comum a todos os aviões, na decoração predomina o aconchegante azul-marinho e o bege, em cores escolhidas por especialistas.

Mas o que tem valor exponencial, na brincadeira reinventada, é a privacidade com isolamento acústico — mais até do que o conforto pelo conforto. A British Airways bebeu dessa ideia para trechos elegantes do jumbo A380. O design prevê poltronas que viram camas planas com 2 metros de comprimento e 93 centímetros de largura, quase o dobro de um assento atual nessa categoria. Há portas, equipadas com um aviso luminoso de “não perturbe”, acionável pelo passageiro. E ainda em 2025, a Air France fará subir ao firmamento dezenove aeronaves Boeing 777-300ER, com cabines 25% mais espaçosas que as antigas, batizadas de La Première, com desembolso de 1 bilhão de dólares da empresa na construção dos quartos aéreos.

Pousou? O refinamento tende a continuar. Uma regalia é o carro de luxo com chofer, na porta de casa, para levar ao aeroporto parisiense Charles de Gaulle. Uma vez no terminal, o embarque é direcionado para uma área separada dos demais tipos de voo, que dá acesso direto aos lounges, com champanhe e chefs estrelados. “Os lançamentos refletem o aumento do número de consumidores dessa fatia”, diz Carlos Ferreirinha, presidente da MCF Assessoria, analista do luxo. Em 2024, 204 pessoas entraram para a lista de bilionários do planeta, segundo relatório da Oxfam, em crescimento de 2 trilhões de dólares no plantel da riqueza em apenas um ano. Ao todo, hoje são 2 769. E só não voa quem tem medo. Quem não tem prefere sair da chatíssima fila da alfândega para estar como em casa ou dentro de um sonho. A retomada da primeira classe é boa notícia. Vale, como provocação e brincadeira dos novos ares, a irônica frase do produtor de cinema americano David O. Selznick (1902-1965): “Só há duas classes, a primeira e a falta de classe”.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941