A história é boa, mesmo que soe alimentada pela imaginação. Ainda criança, com 11 anos de idade, o austríaco Karl Abarth (1908-1979) “tunou” seu primeiro veículo. Cansado de perder as corridas de patinete com os vizinhos mais velhos, ele teria coberto as rodas de madeira com pedaços de couro para ir mais rápido e, assim, chegar em primeiro lugar. Mais velho, tornou-se piloto de renome, capaz de grandes feitos.
Foi campeão cinco vezes em circuitos de motociclismo. Foi mais rápido do que o Expresso do Oriente, então o mais luxuoso trem europeu, em uma corrida de mais de 1 300 quilômetros entre Viena, na Áustria, e Ostend, na Bélgica, em 1934, a bordo de uma motocicleta com sidecar, a carreta lateral para passageiros. Ao se aposentar das pistas, deu início à carreira de desenvolvimento de veículos dedicados à performance especial.
Mudou para a Itália, onde se naturalizou e adotou o nome Carlo, e montou a Abarth & C. com o sócio Guido Scagliarini, em 1949. A proposta era simples: produzir carros velozes. Além de inscrever seus veículos em todo tipo de corrida, vendia kits para alterar automóveis comuns. E, assim, deu início a uma marca que chega agora aos 75 anos e novíssimos modelos — feito surpreendente para uma empresa de nicho.
No período pós-Segunda Guerra, havia uma vontade de testar as inovações tecnológicas da época em carros, e o automobilismo angariou fãs em todo o mundo. No auge, entre as décadas de 1950 e 1960, a Abarth ficou famosa pela calibração precisa das máquinas, a ponto de enfrentar competidores de peso em alguns circuitos, como Ferraris e Porsches. Em 1971, a Abarth tornou-se uma marca da gigante italiana Fiat, após anos de parceria em que Carlo desenvolvia seus esportivos com base em veículos da montadora. Depois de vender a empresa, Abarth continuou no comando por algum tempo. A logomarca do escorpião, desenvolvida pelo criador, tornou-se símbolo da divisão de corrida da Fiat, até que deixou de existir no começo dos anos 1980, reaparecendo apenas de forma esporádica para nomear alguns modelos específicos, como o Fiat Stilo “envenenado”, lançado em meados dos anos 2000. Só voltou de fato como uma marca independente em 2007.
Aqui, no Brasil, ficou fora do mercado durante alguns anos e só retornou em 2022 com o Pulse Abarth, versão topo de linha do SUV compacto. O projeto foi o primeiro totalmente desenvolvido fora da Itália. Embora não seja exatamente barato, é o mais acessível dos veículos de apelo esportivo, vendido a 151 000 reais. A decisão foi estratégica. “O segmento de SUVs cresceu tanto que é quase um minimercado à parte, com opções mais versáteis, outras de apelo off-road”, diz Alexandre Aquino, vice-presidente das marcas Fiat e Abarth para a América do Sul. “Mas vimos a oportunidade de mostrar um modelo voltado para a performance.” No portfólio nacional há outra opção, o Fastback, um SUV cupê maior, oferecido a 161 000 reais. Na Europa, a Abarth tem ainda uma alternativa elétrica, o simpático 500e, e uma edição de aniversário do 695, versão mais invocada do clássico subcompacto.
Para receber o símbolo do escorpião, o processo de tunagem é completo. “Mexemos em tudo que dá para mexer”, diz Aquino. Começa com o motor. Alguns modelos recebem uma versão mais potente do que o resto da linha. Em outros, o propulsor recebe uma calibração específica, mais agressiva. A suspensão também sofre alterações para melhorar a dirigibilidade, especialmente nas curvas. A direção fica mais responsiva aos comandos do motorista. Os dois veículos à venda no Brasil têm um botão, Poison, ou “veneno”, que deixa a tocada ainda mais esportiva. Há também elementos estéticos, como apliques e cores diferentes, e o som do escapamento é ajustado para produzir um ronco grave. Tudo isso em um modelo de passeio convencional, que pode ser usado nos deslocamentos diários para o trabalho ou para levar os filhos na escola.
É claro que a maioria dos consumidores não vai pôr à prova tudo o que os carros têm a oferecer. Mas eles foram testados em circuitos apropriados e em pistas de corrida, seja de asfalto, seja de terra. E tiveram resultados surpreendentes. Em 2020, por exemplo, o Abarth 124 R-GT venceu competidores da Porsche e da francesa Alpine no FIA R-GT Cup, circuito de rali disputado na Europa. São vitórias que dialogam diretamente com a história da Abarth. “Há uma certa satisfação em humilhar carros maiores e mais caros com um simples hatchback”, dizia Carlo quando superava seus competidores. Hoje, o padrão dos carros mudou e os hatches perderam espaço para os grandalhões SUVs. Mas a sensação de ter sob o capô uma máquina potente na carroceria de um carro “comum” se manteve. É brincadeira das boas, que parece de criança, mas é adulta.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892