Contra barulho no escritório, empresas criam ‘espaços do silêncio’
Companhias criam espaços reservados para que os funcionários fujam do burburinho e realizem tarefas que exigem alto nível de concentração
Na cultuada série de humor Agente 86, que fez sucesso no Brasil entre as décadas de 70 e 80 do século passado, o agente secreto Maxwell Smart recorria ao “cone do silêncio” quando desejava trocar informações sigilosas com o chefe. O divertido é que a engenhoca — duas cápsulas transparentes que cobriam a cabeça dos interlocutores — nunca funcionava, e eles mal conseguiam, afinal, se comunicar. Na nova era do trabalho, as empresas têm recorrido a algo mais ou menos parecido. São os “espaços do silêncio”, lugares reservados que permitem aos profissionais manter a máxima concentração, sem serem importunados por colegas barulhentos.
Nos últimos vinte anos, os escritórios passaram por grandes transformações. Os ambientes sisudos, com salas fechadas que reproduziam as divisões hierárquicas, saíram de cena para dar lugar a espaços abertos, com poucas divisórias e mesas compartilhadas. As companhias mais descoladas criaram áreas de lazer dentro das próprias repartições, incluindo mesas de pingue-pongue, cestas de basquete e fliperamas. A ideia, disseram as corporações, era fazer com que os trabalhadores se sentissem à vontade — ou, numa outra leitura, menos dispostos a ir para casa. Seja como for, a verdade é que os escritórios acabaram se tornando locais de certa algazarra, com muita gente falando ao mesmo tempo. Passaram a ser, em suma, locais que dificultam a concentração.
Os espaços do silêncio nasceram para se contrapor a essa tendência. A Microsoft criou um ambiente chamado Flowspace Pod. Com design futurista, é uma espécie de casulo revestido de tecido que “abraça” o ocupante. Ele foi projetado para impedir a entrada de sons externos, e seus painéis em tons neutros reduzem a visão periférica. Tudo isso, diz a empresa, para proporcionar uma sensação de tranquilidade, indispensável nas atividades que exigem maior concentração. Outro gigante de tecnologia, a Cisco adotou estratégia parecida. Os locais intimistas são chamados de huddles (salas para três pessoas) ou apenas quiet rooms (para uma ou duas pessoas). A premissa desses pequenos aquários é evitar que sons vindos de fora atrapalhem o trabalho realizado pelos colaboradores.
Não deixa de ser irônico o fato de as empresas de tecnologia liderarem a transformação. Foram elas que estimularam a criação de escritórios tão dinâmicos quanto caóticos — quem não se lembra das sedes de big techs como Google e Facebook repletas de atrativos para divertir os funcionários? Agora, o caminho parece ser a direção oposta. A unidade do Spotify em Singapura conta com uma sala para relaxamento que tem o objetivo de afastar os colaboradores da agitação do escritório. Há até startups, como a neozelandesa Silent Pod, que oferece cabines de tamanhos variados, capazes de receber de uma a seis pessoas. Elas têm isolamento acústico e garantem a privacidade dos ocupantes. A rede de escritórios compartilhados WeWork também vai oferecer modelos de salas e ambientes controlados.
As mudanças nos escritórios fazem parte de um movimento maior de transformação nas relações de trabalho. “Mesmo antes da pandemia, os profissionais viviam com níveis de estresse e ansiedade maiores que o aceitável”, diz o médico Roberto Aylmer, especialista em gestão de pessoas e saúde no ambiente corporativo. “Desde os anos 1990, uma trajetória profissional de sucesso sempre foi associada a grandes sacrifícios pessoais.” De uns tempos para cá, trabalhadores de diversas áreas começaram a questionar se a vida de privações pessoais valia a pena. Depois da pandemia, as prioridades foram invertidas de vez. Profissionais deixaram de se contentar com o ritmo de trabalho imposto pelas companhias e passaram a trocar de trabalho de acordo com suas necessidades pessoais.
O home office está inserido nesse contexto. Com a pandemia, ele se tornou onipresente e agora muitos colaboradores resistem em voltar definitivamente aos escritórios. Os novos espaços do silêncio seriam inclusive uma tentativa de seduzir aqueles que dizem ser impossível manter níveis elevados de concentração no burburinho das sedes comerciais. Ainda assim, não tem sido fácil atrair os funcionários de volta. Uma pesquisa recente feita pelo instituto ADP Research nos Estados Unidos constatou que 64% dos profissionais pediriam demissão se fossem obrigados a dar expediente no escritório cinco dias por semana. Quem vai na contramão da tendência costuma se dar mal. Recentemente, o bilionário sul-africano Elon Musk exigiu o retorno de todos os funcionários da Tesla ao escritório sob o risco de demissão, mas por enquanto sua ameaça não surtiu nenhum resultado. Parte dos empregados da empresa continua dividindo a rotina entre a casa e o escritório.
Um caso interessante é o da própria Microsoft, pioneira na criação dos espaços do silêncio: 60% dos empregados da empresa no Brasil afirmaram precisar de uma razão justa para estar na companhia se podem exercer suas tarefas longe do escritório. Ninguém quer ir à empresa apenas para agradar ao chefe ou socializar. Ainda assim, alguns setores voltaram à velha normalidade. Na região da Faria Lima, em São Paulo, coração do mercado financeiro do país, o metro quadrado da laje corporativa chegou a 250 reais. Um ano atrás, era 195 reais. Para especialistas, o motivo é o retorno acelerado aos escritórios.
De todo modo, dificilmente as relações no trabalho voltarão as ser como antes. “Os líderes devem ter um olhar mais maduro para o tema, o que às vezes significa mudar até a cultura da empresa”, diz Alexandre Marins, da consultoria LHH. Tradicionais modelos de gestão, como o chamado comando e controle, que estabelecem regras rígidas de convivência e envolvem a supervisão constante dos chefes sobre funcionários, tem caído em desuso. No fundo, o que interessa é o nível de produtividade do profissional, seja em casa, no escritório ou, por que não, nos espaços do silêncio.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823