‘Cresci num cenário de guerra social’
Ex-morador de uma grande favela, o psicanalista Marcelo Barbosa usa essa vivência para atender e escrever

Meus pais eram do Ceará e sempre ouviram falar que São Paulo era a terra das oportunidades. Eles vieram e moravam em Americanópolis, na Zona Sul da cidade, quando ficaram sabendo que construiriam um hospital em Heliópolis e havia terrenos disponíveis. Era 1985, e eu tinha 1 ano de idade. Fui uma criança muito doente, tinha bronquite e não pude frequentar nem creche nem pré-escola. Ficava na casa dos meus tios e vizinhos e crescia em uma favela que se desenvolvia em meio a invasões, esgoto sem tratamento e tráfico de drogas.
Comecei atrasado na escola, aos 8 anos, e me lembro da primeira vez que vi um tiroteio fora do videogame. Tinha uns 9 ou 10 anos, estava jogando fliperama em um bar e presenciei um cara com duas metralhadoras dando risada por ter matado outra pessoa. Isso nunca saiu da minha memória. Foi ali que comecei a sentir o peso da vida, do espaço onde vivia, e comecei a questionar meus pais. Mas era o que a gente tinha, o que dava para pagar. O Estatuto da Criança e do Adolescente é de 1990, e ele não conseguiu me proteger. Cresci num cenário de guerra social.
A própria escola não fazia sentido para mim. Tive bons professores, sérios, mas demorei a entender o que era o espaço escolar e repeti a oitava série duas vezes. Era um jovem sem perspectivas. Minha mãe sempre foi mais durona e queria que eu fosse pedreiro, como meus tios. Meu pai era mais sonhador e achava que eu teria o mundo pela frente.
Olha, até achava que era adotado, porque queria outras respostas e um mundo diferente daquele da minha família. E acabei encontrando isso nos estudos. Depois do ensino médio, fiz curso técnico. Fui locutor e sonoplasta, parti para o jornalismo e, depois, para a área de ensino. Fui muito criticado quando saí da favela. Diziam que ela é que me fez crescer e me deu onde morar. Mas é fácil romantizar a favela. Não penso assim. Qual é a dificuldade de padronizar as moradias com dignidade e dar senso de pertencimento às pessoas? Não consigo aceitar esse contexto como algo normal. As pessoas não podem crescer dessa forma.
Fico frustrado com o que vejo por aí, claro, mas tento passar para a literatura toda essa situação de vulnerabilidade. Me formei psicanalista e escrevi uma trilogia, Favela no Divã, e, recentemente, uma ficção mostrando como esse ambiente influencia a jornada das pessoas, A Vida de Cão do Requis. Volto à favela para fazer projetos sociais, mas confesso que essa experiência às vezes me ativa gatilhos de ansiedade. Não é fácil ter visto gente morrer ali.
Perdi meu pai há dois anos. Ele tinha diabetes e, quando já estava bem doente, conversamos bastante. Soube das suas histórias na roça e descobri que tenho um irmão que estaria preso. Uma tia comentou que ele é de Diadema, no ABC Paulista, mas não sei o presídio onde ele poderia estar nem se já foi solto. Essa história me impressionou. Agora, estou captando recursos para um projeto pela Lei de Incentivo à Cultura para entregar meu livro Favela no Divã às 179 unidades prisionais de São Paulo, dentro de um programa de redução da pena por dedicação à leitura. Eu passei pelos traumas que muitos presidiários viveram. Sei que é possível encontrar um caminho para sair de lá.
Mesmo com as dificuldades da pobreza e da favela, consegui o que meus pais não conseguiram. Eles morreram analfabetos. Eu quebrei as amarras de uma herança de maldição intelectual. Hoje, como psicanalista, atendo quem não pode pagar por terapia. Nas sessões, ocorre um encontro de sofrimentos. Muitas pessoas trazem experiências pelas quais já passei ou de que ouvi falar, mas reajo como profissional, com uma escuta ativa. No fim, eu sou o meu próprio estudo de caso.
Marcelo Barbosa em depoimento a Paula Felix
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931