“Crianças trans existem. Fui uma delas”, diz top model Valentina Sampaio
A brasileira de 26 anos é a primeira modelo transgênero a estrelar desfiles da Victoria’s Secret
Sou Valentina desde que me entendo por gente. Então essa questão de assumir minha identidade transgênero foi bastante natural. A descoberta veio mais do mundo à minha volta. Na infância, era meio reprimida, porque as pessoas faziam eu me sentir diferente, errada, só que tenho personalidade forte. Sempre tive certeza de quem eu sou. Meus pais são do Nordeste, vêm de uma criação mais conservadora, não são tão comunicativos. Então não tivemos conversas mais profundas. Na verdade, eles me chamavam a atenção: “Não tem que andar desse jeito”, “Tem que falar assim”, “Isso é coisa de menina”… Então fui aprendendo a lidar com essas questões sozinha, não tinha com quem ter esse diálogo. Minha transição ocorreu dia após dia, não houve um momento exato.
O fato é que, desde criancinha, já customizava as minhas roupas, manifestava minha identidade por meio da moda. Na adolescência, desenhava croquis e peças. Entrei na faculdade de moda em Fortaleza e ali comecei a ter contato com as pessoas desse universo. Passei a fotografar e virei modelo. Minha visibilidade veio pelo Instagram. Me lembro que tive a oportunidade de fazer o casting para o filme Berenice Procura, no Rio de Janeiro, e, durante as gravações, a L’Oréal entrou em contato comigo pelas redes sociais para gravar um vídeo para o Dia Internacional da Mulher. Essa campanha teve bastante repercussão, e não parei mais. Me mudei para São Paulo e logo fiz minha primeira Fashion Week. Dois meses depois, já estava viajando para Londres para virar capa de revista.
Mas claro que, ao longo de todo esse processo, sofri bastante preconceito. No começo era mais direto: já cheguei a ser tirada de estúdio, estando toda arrumada e pronta para fotografar, quando o cliente percebeu que eu era trans. Cancelou o trabalho e tive que sair. Hoje as pessoas sabem quem eu sou, então não sofro mais esse preconceito diretamente, pelo menos no ambiente de trabalho. Mas lá fora ainda tem muito. Principalmente na internet, onde as pessoas se acham donas da verdade e no direito de julgar e retaliar com comentários maldosos. Agora sou mais blindada, procuro não me afetar tanto, sempre olho para o lado positivo, sei que eu estou fazendo o que acredito que é certo e não tem nada errado em ser quem eu sou. Já pensei em desistir, mas o que me deu forças era saber que essa luta não era só minha, mas de todas as pessoas que, como eu, enfrentam discriminação. Hoje moro em Nova York, uma cidade mais livre, onde tive inúmeras oportunidades, entre elas entrar na Victoria’s Secret, um lugar em que sempre sonhei estar. Trabalho com a marca desde 2019 e fazer parte desse movimento de mudanças e de maior inclusividade é muito importante. Sou a primeira trans a desfilar para a grife, que vem se preocupando com a diversidade. É uma vitória para mim e para a sociedade como um todo.
Nos dias de hoje, ver tantas modelos trans trabalhando, as portas se abrindo, o mundo da moda nos abraçando, outras meninas se inspirando em mim… Tudo isso me deixa feliz, mas sei que ainda há muito chão a percorrer. E, no Brasil, as coisas são mais difíceis. Tivemos evoluções como a questão do nome social — na minha época, foi preciso uma audiência com juiz e dois anos de espera — e figuras como a deputada trans Erika Hilton ocupando espaços importantes. Só que ainda vemos muito ódio por aí. Os direitos trans são quase inexistentes. A gente briga para ter um banheiro. E o governo anterior ainda incitou mais o preconceito. Precisamos levar informação às pessoas e trabalhar mais na base da lei. Não basta o trans lutar pelo trans. Ainda somos marginalizadas e sexualizadas. Escuto muita gente dizendo que é preciso proteger as crianças, que crianças trans não existem. É claro que existem, eu existo e fui uma delas. Não julgar é hoje a coisa mais bonita que a gente pode fazer por alguém. E o preconceito, definitivamente, já saiu de moda.
Valentina Sampaio em depoimento dado a Simone Blanes
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860