Em meio à diversidade de orientações, cresce debate sobre assexualidade
Mais do que uma terminologia, a definição trouxe alívio a muita gente que se imaginava portadora de um mal por nunca ter sentido impulso sexual
As ruas de Nova York foram tomadas, em junho de 1969, por um movimento que viria a desencadear um decisivo avanço na discussão sobre a sexualidade: as pessoas saíram às ruas para defender um clube gay que havia sido alvo de violentos ataques da polícia. Batizada de Rebelião de Stonewall, a manifestação durou seis agitados dias e dali emergiu a sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Passado meio século, a vastidão de letras que expressam diferentes orientações sexuais foi se ampliando até que, na década de 1990, começou a se falar de assexualidade — o “A” das nove opções compreendidas no leque LGBTQIAPN+. O marco da existência do grupo — que, em comum, tem pouca ou nenhuma vida sexual, fruto da ausência do desejo — foi o reconhecimento formal da Asexual Visibility and Education Network de que ele representa uma fatia da população mundial.
O assunto veio aos holofotes com o sucesso de Slow, vencedor da categoria de melhor direção no Festival Sundance, nos Estados Unidos. A obra lituana conta a história de amor entre Elena e Dovydas, que se envolvem emocionalmente. Um belo dia, Dovydas revela: “Eu não sou atraído por ninguém sexualmente, nunca fui. Sou assexual”. E dá-lhe posts sobre o tema, simbolizado por bandeiras das cores preto e roxa, que intriga pelo desconhecimento que o cerca. Um sinal positivo de que o tópico já deixa as sombras está em uma recente pesquisa publicada na revista científica Nature, conduzida pela USP junto à Unesp. O levantamento mostra o fenômeno — 5,8% dos brasileiros se declaram assexuais. No mundo, compõem um contingente de 80 milhões de pessoas. “Eles podem amar, se apaixonar e cultivar relacionamentos, mas são pouco ou nada interessados em sexo, e isso não lhes traz sofrimento ou conflito”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade do Hospital das Clínicas da USP, à frente do estudo.
Não há até agora evidências científicas em número suficiente para corroborar a hipótese de que a assexualidade seria resultado da genética de cada um. O mais provável é que suas raízes estejam fincadas em múltiplos fatores, aliando uma tendência hereditária à educação e à cultura em que o indivíduo se encontra imerso. Chama atenção na publicação da Nature o fato de 7,7% das mulheres se classificarem assexuais, enquanto apenas 2,5% dos homens se encaixam no escaninho. A diferença pode ter relação com um traço masculino: para eles, seria mais duro admitir o desinteresse. Já sob o ângulo feminino, não se descarta a linha segundo a qual algumas delas, sobretudo as mais velhas, se definirem assexuais quando, na verdade, foram podadas em seu desejo, incapazes de deixá-lo aflorar. “Muitas mulheres passam a vida sem conhecer um sexo prazeroso”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg.
Mais do que uma terminologia, a definição da assexualidade trouxe alívio a muita gente que se imaginava portadora de um mal por nunca ter sentido impulso sexual. Na adolescência, todo mundo falava de sexo, e o publicitário Cristofer Mansano, 27 anos, se via à margem. “Ficava inseguro porque era o único que não tinha beijado ou transado com alguém”, lembra. “Agora, estou em um relacionamento há dois anos, com uma pessoa não assexual, e conversamos muito para alinhar as expectativas”, diz ele, que raríssimas vezes tem vontade de fazer sexo, uma fagulha que o situa na chamada “zona cinza” da assexualidade. “Por meio do diálogo, os casais podem firmar acordos saudáveis. Não existe uma fórmula para isso, o importante é respeitar os limites de cada um”, afirma o sexólogo Rodrigo Torres.
O mundo caminhou muito desde que Sigmund Freud (1856-1939) plantou os primeiros pilares da psicanálise — entre eles, a compreensão da libido, a energia psíquica derivada dos instintos sexuais, como grande força motriz da existência humana. A ausência do ímpeto sexual seria, para ele, indicador de um problema, até de uma neurose. Hoje, mesmo integrantes da escola freudiana têm revisitado essa visão. “A libido não deve ser reduzida à excitação sexual, mas ampliada para a busca do prazer de forma geral, nos vários departamentos. No caso do assexual, não praticar sexo gera inclusive satisfação”, diz a psicanalista Neila Mendes, da PUC-Rio. Aos 22 anos, o ilustrador Cris Ferreira se sente plenamente satisfeito ao sair com alguém e passar a noite conversando “sem ir para os finalmentes”, ainda que esteja apaixonado. “Tenho atração romântica, mas não sexual em meus relacionamentos”, esclarece, reconhecendo um peso que incide sobre as costas dos assexuais: a sociedade, em geral, só entende a plenitude quando há vida sexual no horizonte.
A constante falta de vontade de estabelecer relações físicas pode, sim, ser sinal de uma disfunção — baixa hormonal, depressão, conflitos no relacionamento, entre outros. “Isso ocorre com pessoas que tinham interesse em sexo, perderam por alguma razão e querem recuperar aquilo”, diz Carmita Abdo. São essas nuances que vão sendo aos poucos assimiladas. A designer Alice Alivorte, 27 anos, conta como se viu estigmatizada por fugir à norma e, mais nova, tentou levar uma rotina sexual como a dos outros, para fugir do estranhamento alheio. Acabou ficando presa num ciclo que lhe fazia muito mal. “Cheguei a achar que estava doente e procurei médicos, mas não havia nada de errado comigo”, relata ela, que, ao descobrir se identificar com a letra “A” do extenso leque da diversidade, se acalmou. Mesmo não sendo uma trilha simples, é certamente a mais verdadeira para essa turma.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898