Equilíbrio dá trabalho: estudo confirma que, no pós-pandemia, o expediente foi esticado
Com a vida a um clique, cria-se o risco do ciclo contínuo de atividade

Não há dúvida: a tecnologia mudou o mundo do trabalho e a pandemia foi o empurrão que faltava para consolidar a transformação. De uma hora para outra, o escritório deixou de ser um lugar fixo e tornou-se uma ideia fluida, dispersa entre chamadas de vídeo, mensagens instantâneas e a solidão produtiva de quem trabalha de casa. Os horários rígidos deram lugar a uma agenda flexível e o trânsito insuportável foi substituído pelo simples ato de abrir um notebook. Houve ganhos: mais tempo para a vida, menos gastos, a liberdade de ditar o próprio ritmo. Mas também vieram as sombras — a dificuldade de desligar e a sensação de que o trabalho agora invade cada canto da casa como hóspede permanente. A questão — uma das mais prementes da vivência contemporânea — está no centro do relatório de tendências de trabalho em 2025, estudo elaborado pela Microsoft. Emerge da investigação o dilema dos profissionais conectados diante daquele tal “novo normal”, a jornada de labuta infinita, sem hora nem para começar nem para terminar.
A pesquisa confirmou o que soava evidente: as pessoas estão trabalhando mais do que nunca, respondendo a e-mails e participando de reuniões do momento em que acordam até a hora de dormir. Aos números: 40% checam mensagens às 6h, recebem em média 117 delas por dia e enfrentam 16% mais reuniões noturnas, entre outras funções fora de hora (veja o quadro). “O que antes era um ritmo previsível das 9h às 17h se transformou em um ciclo contínuo de atividade”, disse a VEJA Alexia Cambon, diretora de pesquisa na Microsoft. O home office e a jornada híbrida se consolidaram como formatos viáveis e cheios de vantagens, sim. Contudo, surgiram novas pressões que estão levando um naco dos profissionais ao limite, extenuados.
Diferentemente do que pode parecer à primeira vista, estar sempre online não é sinônimo de produtividade. Pode resultar, a rigor, no contrário. Com a necessidade de responder imediatamente a chefes e colegas, de acompanhar um fluxo sem fim de mensagens e atualizações, corre-se o risco de ter a concentração roubada e entrar em exaustão mental — conjunção perfeita para a eclosão do fantasma do burnout, o flagelo dos tempos modernos. “No curto prazo, pode parecer que a hiperconectividade vale a pena. Mas há um custo a ser pago nas relações sociais, familiares, afetivas e pessoais”, diz Marcelo Afonso Ribeiro, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Mesmo sendo fã do home office, a economista Claudia Beraldo, 61 anos, ainda está aprendendo a lidar com os prós e contras do novo ritmo. “Por causa do trabalho remoto, economizo horas de deslocamento e viajo a turismo muito mais do que no passado. Por outro lado, acabou a fronteira entre o período de trabalho e o de lazer. Já fui chamada para reunião às 22h”, diz Claudia. Ela considera natural passar do horário em situações excepcionais, mas se esforça para não fazer dessa toada a rotina inescapável.
Na contramão da lógica do quanto mais, melhor, nações como Islândia, Bélgica e Nova Zelândia estão testando com sucesso a semana de quatro dias de trabalho. Os resultados são reveladores: funcionários mais descansados, motivados e, surpreendentemente, com um nível de produtividade igual ou até maior do que na jornada convencional. Recentemente, a Austrália deu um passo ousado ao instituir o “direito à desconexão”, permitindo que trabalhadores ignorem comunicações fora do expediente sem sofrer represálias. A medida surgiu como resposta a um cenário alarmante: os australianos acumulavam em média 281 horas extras não remuneradas por ano. A norma não proíbe contatos após o horário, mas cria mecanismos de proteção (até onde isso é possível em um ambiente notório pela exigência e pela competitividade) aos que optam por estabelecer limites, com multas equivalentes a até 350 000 reais para empresas que insistirem em violar esse direito.

Outro fator que, segundo a pesquisa, dificulta o tempo livre e de descanso, fundamental para estimular a criatividade, é a muito propalada convicção de que agenda boa é agenda lotada. Nas redes sociais — sempre elas —, a vida acelerada virou espetáculo: posta-se a correria, cultua-se a falta de tempo e quem para para respirar muitas vezes se sente um impostor, como se estivesse ficando para trás. Só um princípio de exaustão fez com que a arquiteta Ana Vitória Costa, 26 anos, desse uma pausa para rever seu cotidiano, uma jornada de até catorze horas de batente remoto por dia, que considerava o caminho obrigatório para construir uma carreira. “Me sentia culpada quando descansava, mas percebi que o estresse na verdade prejudicava a qualidade do meu serviço”, afirma. Ela agora se policia para não ser engolida pelas atualizações no smartphone. “Sempre estar disponível, respondendo a todos, me deixava extremamente ansiosa. Me dei conta de que também preciso estar disponível para mim mesma”, diz.
Que fique claro: a tecnologia não é vilã no ambiente de trabalho e, ao contrário, contribui muito para aperfeiçoá-lo. Os mesmos recursos digitais que levam a extremos de dedicação podem ser reinventados para servir às pessoas e, nesse ponto, o avanço da inteligência artificial (IA) é grande aliado. A IA pode automatizar o que é repetitivo, resolver o que é simples e poupar profissionais do ruído das microinterrupções e das reuniões desnecessárias durante o expediente. “Temos agora ferramentas que podem formatar resumos, organizar ideias e somar para que as tarefas tenham mais eficiência, agilidade e consistência”, analisa Paula Esteves, CEO da Cia de Talentos e diretora da Associação Brasileira de RH. Livre de funções monótonas e mecânicas, os funcionários podem dedicar mais de seu tempo ao desenvolvimento de projetos criativos e estratégicos.

Estabelecer limites no trabalho a distância exige mais do que boa vontade — é uma mudança de cultura que começa no indivíduo e só se consolida com o exemplo da liderança. Especialistas recomendam aos funcionários iniciativas protetoras do tempo individual: comunicar claramente seus horários disponíveis, criar blocos de trabalho sem interrupções e até desligar notificações ao final do expediente. Para as empresas, a mudança precisa ser estrutural. Líderes que respeitam horários e implementam “dias sem reuniões” mostram que políticas de bem-estar vão além do discurso. O verdadeiro futuro do trabalho não está na quantidade de horas conectadas, mas no equilíbrio e na qualidade do tempo dedicado a ele — uma jornada em que menos pode significar mais produtividade, mais criatividade e, sobretudo, vida mais bem vivida.
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952