De todos os lançamentos literários que discutem os 60 anos do golpe de Estado que instaurou a ditadura militar no Brasil, o mais inusitado e instigante é “Chumbo” (Editora Nemo, 368 págs., R$ 119,80). Trata-se de uma graphic novel escrita e desenhada pelo autor franco-brasileiro Matthias Lehmann que retrata um período fundamental da história brasileira. De meados dos anos 1930 até a década de 2000, a volumosa obra traça um retrato de fôlego.
A trama é centrada nos Wallace, livremente inspirada em parentes do autor, e usa o núcleo familiar para abordar as discordâncias ideológicas e as negociações políticas que definiram os rumos do país. Nas páginas, Lehmann mistura elementos do design brasileiro, de pinturas famosas e de arquitetura e faz menção a personagens históricos verídicos para compor o trabalho.
Tudo isso mostra que o olhar de Lehmann não é estrangeiro. Filho de mãe brasileira e pai francês, viveu na Europa, mas veio para cá muitas vezes na infância. Agora, com “Chumbo”, mergulha a fundo em um período fundamental da história. Lançada na França em 2023, a obra foi indicada ao prêmio Angouleme, o mais importante dos quadrinhos.
Na entrevista a seguir, Lehmann fala sobre suas inspirações, seu método de trabalho e os paralelos sobre a história que conta na HQ e o momento atual de ascensão da extrema-direita na Europa.
Você tem uma ligação com o Brasil, Por que decidiu escrever agora sobre esse período da história?
Minha ligação com o Brasil é pela minha família. Minha mãe é brasileira e transmitiu essa cultura para mim. Mas cresci na França e como muita gente que tem duas nacionalidades, sentia que uma não era exatamente meu país. Eu queria construir uma relação mais pessoal com o Brasil. Com as minhas armas, de certo modo, e minha arma é escrever quadrinhos.
Quais foram suas principais fontes de inspiração e informação para construir a história?
Nenhum quadrinho. Não sei se existe algum que aborde o tema. Deve existir, mas preferi não olhar o que outros quadrinistas fizeram e ir mais fresco para a história. Li muitos livros de história da ditadura, da guerrilha, dos militares. Sobre a história de Belo Horizonte. Li um ótimo do Humberto Werneck, “O Desatino da Rapaziada”. Me inspirei nele para criar o Severino, um jornalista que quer ser escritor.
E a documentação visual?
Encontrei um livro do Chico Homem de Mello sobre o design brasileiro que foi editado pela Cosac Naify, que é muito completo. Fui olhando e pegando ideias. O design brasileiro é muito rico, e quis me apropriar disso. Procurei também na internet. Lá se acha muita coisa, mas não dá para procurar de modo preguiçoso. Senão, você acaba encontrando as mesmas referências que todo mundo usa.
Como tem sido a repercussão na Europa?
Por enquanto ele foi publicado na França, depois vai para Portugal e Holanda, além do Brasil. A recepção foi muito boa. Para muitos franceses, o Brasil é só alegria, música, futebol, carnaval e praia. É claro que tudo isso faz parte, mas é muito mais. Eu queria falar das coisas mais difíceis, sombrias até. E aqui as pessoas até sabem que houve uma ditadura, que houve um golpe de estado, mas pouco além disso.
Quais são as possibilidades que os quadrinhos, como meio de contar histórias, oferece?
São múltiplas. Porque você tem texto, imagem, composição de página, design, todas essas coisas entram. Você pode falar de pintura, de cinema, de música. Tudo isso trabalhado com um ritmo. É muito interessante. Você trabalha com o ritmo para contar coisas só com imagem, pode sugerir outras, de forma mais intuitiva. Vai mostrando algo, confiando que o leitor vai compreender aquilo e criar a narração dentro da cabeça dele. É uma experiência.
Como é seu método de trabalho?
Faço pequenos esboços e tenho uma ideia da composição antes de desenhar a página final. Quero contar a história com certo ritmo, mas também quero me surpreender. Se fizer só as páginas sempre quadradinhas vou me cansar. De vez em quando faço explodir uma composição, busco referências nos quadrinhos, no design, na arquitetura, para encontrar uma motivação.
Quanto tempo demorou para finalizar o trabalho?
Quatro anos. O volume final da obra ficou com 360 páginas. Então, produzi cerca de 100 páginas por ano, contando com a documentação, as pesquisas, os desenhos e roteiro. Trabalhei muito. E rápido! (risos)
Você vê paralelo entre a situação atual do Brasil e o que acontece na França?
Sim. É algo muito processo do que está acontecendo agora na França, com a ascensão da extrema-direita e do autoritarismo. Acredito que vamos ter um governo de extrema-direita no futuro. Como na maioria dos países da Europa, na realidade. É algo geral, uma vontade de buscar segurança nessas figuras de autoridade. E acredito que as redes sociais estão muito ligadas a esse fenômeno. No Brasil, de certo modo, Bolsonaro autorizou esse pensamento naquele momento em que votou pela destituição da Dilma e dedicou o voto a Ustra. Foi um momento importante, que provocou uma resposta da sociedade. E isso é apavorante.
Como reverter esse movimento? Valorizando a memória de épocas com o da ditadura?
Não sei se a memória é mais suficiente. As pessoas têm uma opinião, e ela é muito mais importante que ouvir a ciência ou estudar história. Para elas, nada disso tem importância. Querem defender essa opinião e pronto. “Chumbo” é um tipo de obra que participa de um movimento global de luta.
Você vê esse movimento com otimismo?
Está difícil ser otimista, mas se não tentarmos lutar contra isso, não nos restará mais nada. Temos que ir pra frente e enfrentar. Aqui, na França, estamos muito preocupados com o que vai acontecer. Mas vendo a situação do Brasil, mesmo sabendo que as coisas estão complicadas, tenho esperança. Há pessoas se esforçando para salvar a democracia. É difícil, nem tudo está perfeito. Mas espero que a situação não fique tão ruim. Tanto no Brasil quanto na França.