Isso não é uma banana: o curioso conceito por trás da polêmica
Muito se falou dos obscenos 6,2 milhões de dólares pagos por uma obra de arte banal — mas há nela uma ideia muito interessante, o que tem um preço

Ele talvez não tivesse tomado café da manhã, ou tinha fome de ribalta, aqueles quinze minutos de fama a que todos nós teríamos direito, a partir da máxima de Andy Warhol. Diante de um pelotão de jornalistas, em um dos salões de um hotel cinco estrelas de Hong Kong, o empresário chinês radicado nos Estados Unidos Justin Sun comeu uma banana depois de descascá-la com vagareza. E dá-lhe flashes, naquela manhã de sexta-feira 29 de novembro. Não era uma banana qualquer. Era a mais cara do mundo, de 6,2 milhões de dólares, algo em torno de 37 milhões de reais, o valor pago pelo empreendedor — o campeão de investimentos em criptomoedas — em um leilão da Sotheby’s nova-iorquina pela obra do italiano Maurizio Cattelan, Comedian, exibida pela primeira vez em 2019. A peça, a rigor, é um caderno de catorze páginas, com instruções de como montá-la, e um certificado de autenticidade. O treco é simples: pega-se a fruta (a de Sun foi comprada por 25 centavos de dólar em um quiosque de Manhattan) e, com a ajuda de uma fita adesiva prateada, cola-se a planta herbácea na parede. “É muito melhor do que as outras bananas”, disse o investidor, com um largo sorriso irônico, depois da primeira mordida.
Foi um escarcéu a girar o mundo, deu o que falar. A questão que não quer calar, e nem é tão difícil assim digeri-la: afinal, é uma obra de arte? Dito de outro modo, como é que uma criação banal, esteticamente duvidosa, pode valer tanto no mercado? Tome-se emprestado o bonito argumento, dada a singeleza, do crítico britânico Will Gompertz, autor de Isso É Arte?, ao navegar em torno de A Fonte, aquele famoso urinol de porcelana de Marcel Duchamp, de 1917: “Ao propor que uma ideia é mais importante que o meio, privilegiando assim a filosofia sobre a técnica, terá ele obstruído as escolas de arte com dogma, tornando-as amedrontadas e desdenhosas em relação à habilidade técnica? Ou terá sido um gênio que fez a arte se emancipar das trevas de seu bunker medieval, como Galileu fizera pela ciência 300 anos antes, permitindo-lhe florescer e desencadear uma revolução intelectual de longo alcance?”.

Hoje todo mundo sabe que Duchamp redefiniu o que a arte era e poderia ser, com seu ready made — mas também ele seria atropelado pelo tempo, implacável. O original daquele mictório branco, exposto no Centro Georges Pompidou, o Beaubourg, em Paris, e suas cópias, mundo afora, já não provocam espanto e tampouco riso. Mal atraem olhares e, quando despontam, usam óculos de desdém. Não se trata de diminuir o feito inusitado da primeira metade do século XX nem de jogar no lixo, como casca de banana, a história. O passar dos anos, contudo, é cruel — faz muita coisa apodrecer de velho.
Então, o Comedian do italiano é como A Fonte de Duchamp? Não. Os ecos são incomparáveis, e logo ali na esquina a invenção de agora tende a ser esquecida. Duchamp rompeu com tudo; Cattelan, embora respeitado, não. Mas tire o cavalo da chuva quem vê no episódio o ridículo — há sim um conceito poderoso, e ele tem preço.

É o conceito, aliás — apesar da pornografia dos dólares sem limite — que autoriza responder à pergunta “Isso é arte?” com uma sonora palavra de três letras sem o til. Sim. Até porque, goste-se ou não, se foi parar em museus, se andou por leilões, se colecionadores demonstram interesse, é arte, ponto. Desconsiderá-la é voltar para antes do início do século XX. Duchamp, lá atrás, deu a deixa: para ele, o papel de um artista na sociedade era semelhante ao de um filósofo; não importava sequer se ele sabia pintar ou desenhar. O trabalho de um artista não era proporcionar prazer estético, mas afastar-se do mundo e tentar compreendê-lo ou comentá-lo por meio da apresentação de ideias sem nenhum propósito funcional além de si mesmas. “A banana de Cattelan é uma obra-prima da arte conceitual”, disse a VEJA o respeitado colecionador brasileiro Pedro Barbosa, que roda o mundo em busca de novidades iconoclastas. “É uma crítica irônica ao sistema, ao oferecer um trabalho que se desmaterializa, em que apenas o certificado e o dinheiro são físicos.”
Some-se às camadas irônicas o fato de o comprador ser de um ramo, o das criptomoedas, em que a riqueza vai e vem como ondas no mar, líquida, fluida, impalpável. Tudo somado: pode-se dizer que o projeto do italiano associado ao poderio econômico do chinês, que em seguida engoliu tudo o que pagara, de modo que o ciclo continue — ele repôs a banana com a fita em sua casa —, é um interessantíssimo comentário em torno da banalização do dinheiro, mas também a respeito da engrenagem dos leilões e galerias. Não é um soco como o de Duchamp, não provoca epifania seminal como Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, que quebrou a vida em pedaços, em 1907, mas e daí? Pode nem ser bonito ou bom de ver, mas, se faz pensar, vale ouro ou prata. E que fique claro: a Comedian não é uma banana.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922