Estreia no Brasil nesta quinta-feira, 31, o documentário “Ithaka: a Luta de Assange”. No filme, os espectadores assistem de perto a exaustiva jornada de John Shipton e Stella Assange, pai e esposa de Julian Assange, contra o processo de extradição do jornalista para os Estados Unidos.
Detido preventivamente, desde 2019, no Reino Unido, o australiano ficou conhecido por fundar o WikiLeaks, organização responsável pelo vazamento de 700 mil documentos diplomáticos e militares confidenciais do governo americano. Os arquivos expõem supostos abusos cometidos pelas Forças Armadas e espionagem a chefes de governo. Entre eles, um crime de guerra: uma gravação mostra helicópteros americanos atirando contra civis, no Iraque, em 2007, ataque que culminou na morte de dois jornalistas da Reuters.
Treze anos depois, ninguém foi punido pelas revelações, mas os Estados Unidos lutam intensivamente para que Assange seja julgado no país por ferir a lei de espionagem americana. O pedido hoje está nas mãos da corte britânica. O caso traz um ineditismo: é a primeira vez que um jornalista e editor é enquadrado por este crime na longa história democrática estadunidense.
Entre negativas, aprovações e apelos jurídicos, o imbróglio dura até hoje e o filme mostra uma dessas disputas, tangenciando, contudo, dois momentos controversos da história: uma acusação de abuso sexual, na Suécia, que o fez fugir para o Reino unido e, posteriormente, se exilar na embaixada do Equador; e o vazamento de e-mails de Hillary Clinton, durante as eleições de 2016, que o fez perder grande parte do seu apoio, então ancorado em eleitores de esquerda e centro-esquerda.
Produzido pelo meio-irmão do fundador do WikiLeaks, Gabriel Shipton, e dirigido por Ben Lawrence, o documentário empresta o título de um poema escrito por Constantine P. Cavafy, em 1911. A obra é uma das favoritas de Assange e narra a trajetória de Odisseu de volta para casa após a Guerra da Tróia. A moral já se repetiu exaustivamente: o caminho é tão – ou mais – importante que o destino.
É difícil dizer que a máxima se aplica quando se trata de um pai lutando contra a prisão injusta de um filho, mas a mensagem aqui é clara: em meio a acusações de tortura psicológica, os familiares acusam o governo americano de ferir sua própria constituição ao ameaçar a liberdade de imprensa, com a conivência dos governos britânico, sueco e australiano. Em sua passagem pelo Brasil, John Shipton concedeu entrevista a VEJA e falou sobre o futuro do filho e as implicações da luta pela sua liberdade.
Em um momento muito comovente do filme você menciona que as coisas não podem melhorar para Assange. Na verdade você diz “só pode piorar”. Você ainda acredita nisso? É possível que o mundo ainda assista um final feliz para seu filho depois de todos esses anos? Essa gravação foi há dois anos atrás e o Julian ainda está na cadeia. Tudo o que nós temos na Terra é tempo. Nem riqueza, nem beleza, apenas tempo. Julian já perdeu mais dois anos desde lá, então está pior. Não acho que no caso de Assange dá para usar contos de fadas como ilustração. Nós só temos o fato: Um jornalista foi injustamente perseguido por 14 anos. E ele foi responsabilizado por todos os anos que perdeu na cadeia. Nossa obrigação não deve ser procurar um final feliz, mas procurar as causas e as forças que fizeram com que isso acontecesse.
O senhor e a Stella Assange, esposa do Julian, têm lutado contra a extradição. O que significaria para a liberdade de expressão e para o jornalismo se ele fosse enviado para os Estados Unidos? E o que você acha que aconteceria com ele lá? Sobre o jornalismo e a liberdade de imprensa, parece que as consequências já aconteceram. A imprensa já foi intimidada. Sobre o Julian nos Estados Unidos, isso o mataria. É isso que eles querem. No entanto, algumas pessoas, como o Glenn Greenwald, sempre me dizem que Washington quer uma saída para essa sujeira que eles fizeram, então farão de tudo para que o Julian aceite algum tipo de acordo judicial, para que eles não precisem carregar essa responsabilidade.
Nessa primeira semana no Brasil você teve contato com alguns políticos, correto? O que você ouviu deles e como tem sido essa campanha ao redor do mundo para discutir o caso de Julian? No geral, pessoas com a coragem franca do presidente Lula, do presidente Obrador ou de Dilma Rousseff são raras. Não é comum encontrar políticos assim. Quando isso acontece é gratificante e animador. Mas nesses encontros eu converso, principalmente, com pessoas comuns. Ocasionalmente eu encontro políticos poderosos, mas esse não é o ponto. O que nós queremos é fazer com que pessoas comuns entendam esse caso. É a essas pessoas que os políticos devem responder.
O documentário nos mostra a luta da sua família pela liberdade do seu filho. A imprensa e pessoas nas redes sociais costumam descrever Julian Assange como uma figura controversa. De onde você acha que vem essa imagem? Como essa narrativa mudou desde os primeiros vazamentos do WikiLeaks? Todo mundo considera a destruição do Iraque um grande crime. Isso está documentado nos 400.000 arquivos da guerra. No meio disso, existem provas documentadas da morte de 15 mil civis. Um estudo da Brown University estima que 4,6 milhões de pessoas foram mortas diretamente pelos Estados Unidos no Oriente Médio. É nisso que nós temos que focar, não no Julian. Nós pedimos que esses crimes parem e que quem cometeu os crimes seja responsabilizado. Julian não cometeu nenhum crime. Nós não queremos que ele seja liberto porque ele é uma figura controversa. O que nós queremos é que os crimes contra a humanidade parem e as pessoas certas sejam responsabilizadas.
Você acredita que Julian está sendo julgado pela sua personalidade? Na China eles tem um ditado que diz que, quando alguém aponta para a Lua, os idiotas olham para os dedos. É o que está acontecendo. Nós só nos preocupamos com os crimes. Se uma nação está segura, todas estão. A segurança de uma não pode ser garantida em detrimento da insegurança de outra.