No início do século passado, Sigmund Freud (1856-1939) apresentou, diante dos olhos atentos dos alunos da Universidade de Viena, na Áustria, o nascimento de um novo campo de estudos que se debruçava sobre o inconsciente: a psicanálise. Na ocasião, ressaltou a importância de uma “ligação emocional especial” entre médico e paciente, de modo que este, quando se deitasse no divã, se sentisse confortável para revelar o lado “mais profundo de sua vida mental”, o que ocultava de outras pessoas e “não admitia nem a si próprio”. Aquele deveria ser um tratamento, Freud alertou, “aplicável a uma única pessoa e jamais a todo um auditório de estudantes”. Pode-se imaginar então o susto do pai da psicanálise se fosse teletransportado para o presente e se deparasse com um fenômeno recente e em acelerada proliferação: uma multidão de jovens, a maioria da chamada geração Z, vem cultivando o hábito de gravar e postar trechos de suas sessões de terapia nas redes sociais.
Ao contrário de seus pais e avós, que pouco comentavam ou simplesmente escondiam as idas ao terapeuta, essa turma não tem problema em assumir que, sim, procura ajuda para tratar da saúde mental, uma positiva quebra de tabu. A exposição nas redes, no entanto, embute questões éticas e problemas sérios. A porta de entrada dos vídeos é o TikTok, onde se tornaram trends entre usuários nos seus 20, 30 anos — os responsáveis por fazer com que a hashtag #therapy, usada mundo afora, acumule mais de 2,7 milhões de publicações. As gravações curtas exibem momentos pinçados da sessão, sempre realizada em modo remoto, incluindo puxões de orelha, conselhos e tiradas divertidas. O rosto e o nome do terapeuta não são revelados, e alguns omitem até a voz do profissional, publicando apenas suas próprias falas. “Editei o vídeo e deixei só as partes engraçadas, com as quais outras pessoas poderiam se identificar. Sei até onde me expor”, diz a designer de moda Laura Roriz, 20 anos, autora de um filmete que hoje soma quase 50 000 visualizações. Detalhe: ela ainda não abordou o assunto com sua psicóloga.
Expor nas redes alguém que não sabe que está sendo gravado, além de indecoroso, é crime, mesmo que o nome e o rosto não sejam mostrados. “Esse é um fenômeno visto com preocupação, que pode gerar um processo caso o psicólogo sinta que foi de alguma forma prejudicado”, observa a vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia, Katie Almondes. Pior ainda se o terapeuta for identificado e acabar submetido, à revelia, ao escrutínio do tribunal da internet. “Filmar e publicar rompe o acordo de confidencialidade e impede que haja uma troca livre e sincera entre analista e paciente”, alerta a presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Ruth Naidin.
Além de escancarar as portas do sigilo terapeuta-paciente, a brincadeira pode também pôr em risco os avanços conquistados a duras penas nas consultas. Sessões de terapia vasculham traumas, memórias trancadas a sete chaves, falhas a serem contornadas e dificuldades do cotidiano que, trazidos à potente luz das redes, em maior ou menor escala, podem transformar um percurso de autoconhecimento em uma performance para a plateia digital. “O risco é colocar a opinião dos seguidores à frente das reflexões propostas por profissionais”, alerta o psicólogo Cristiano Nabuco. “Compartilhar a terapia cria uma série de interferências paralelas, que prejudicam o processo”, acrescenta. Ao fincar os pilares da psicanálise, o próprio Freud enfatizou: “Essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que deve ocultar de outras pessoas”, registrou, sobre a relevância seminal da privacidade no percurso psicanalítico.
Ao mergulhar no crescente universo dos vídeos em que a terapia é exibida a tão vasta audiência, encontram-se depoimentos que refletem aflições mais imediatas (“Não sei se quero um emprego, a relação com meus chefes tem me estressado”), até dilemas mais densos (“Fico apaixonada a ponto de criar uma dependência emocional”). Os fatores que movem uma pessoa a devassar momentos de tamanha inflexão e intimidade têm raízes na forma como as novas gerações, nascidas e criadas no mundo digital, se relacionam com ele. Há fortes indícios de que, imersos nos labirintos da internet, os jovens se sentem mais solitários — um de cada três assim se definiu em uma recente pesquisa global da plataforma YouGov. Daí a propensão a saírem em busca de audiência virtual, ainda que, em muitos casos, ela acabe por reforçar a sensação de isolamento. Outro vigoroso impulso a fazer circular por ali a conversa com o terapeuta tem a ver com o afã de acumular likes, seguidores, engajamento — uma (para lá de questionável) medida de sucesso dos tempos atuais. “É uma forma de obterem aprovação e tornarem a própria vida um espetáculo”, afirma o sociólogo Rafael Silva.
Muita gente nesse rol dos que exibem trechos de sua terapia também justifica estar imbuída de uma bandeira: incentivar os outros a tratar da cabeça. São afinal eles, os jovens, os mais acometidos por transtornos de saúde mental em quase toda a parte do mundo, inclusive no Brasil, segundo o relatório Panorama da Saúde Mental, do Instituto Cactus, em parceria com a AtlasIntel. Adepta de compartilhar seu dia a dia nas redes, a atriz Beatriz Jordão, 20 anos, integra o pelotão que expõe as sessões com a psicóloga. Contabilizando mais de 5 milhões de seguidores, ela alcançou, em um único vídeo, 180 000 visualizações. “Os comentários me surpreenderam. Várias pessoas falaram sobre aquilo ter lhes despertado a vontade de fazer terapia”, diz.
Há casos em que a transposição do divã para o TikTok é feita com consentimento e aprovação do terapeuta. “Antes de gravar, contei ao psicólogo meu desejo de participar da onda e ele permitiu”, conta a influencer Clara Borrelli, 19 anos, que é acompanhada por 210 000 seguidores. “Grande parte dos meus problemas está relacionada às redes sociais e sempre tratamos disso nas sessões.” Pode ser moderno — mas é pouco provável que Freud achasse útil e positivo. Certamente, não.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911