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Marcenaria, tricô e mais: a geração Z está ligada nos ofícios manuais

Nascidos no ambiente digital, eles buscam em técnicas tradicionais hobbies e oportunidades de carreira

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Valéria França Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 ago 2024, 22h31 - Publicado em 16 ago 2024, 06h00
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  • Houve um tempo, não tão distante, na pré-história antes da internet, em que fazer pequenos reparos ou construir algo com as próprias mãos era banal. Qualquer casa tinha um conjunto de ferramentas disponível para o trabalho que aparecesse, de consertos na porta da garagem à necessidade de abrir um eletrodoméstico problemático. Com o tempo, essa habilidade foi se perdendo. As ferramentas deram lugar aos computadores. E o trabalho intelectual, exercido nos cubículos dos escritórios, tornou-­se a norma. “O declínio no uso de ferramentas provocou uma mudança na maneira como nos relacionamos com nossas próprias coisas, mais passivo e mais dependente”, escreve o pesquisador americano Matthew B. Crawford em Shop Class as Soulcraft, ainda inédito no Brasil. “O que antes as pessoas consertavam, hoje elas substituem completamente ou contratam um especialista para reparar.”

    TRADIÇÃO - A estilista Martha Medeiros: valorização dos rendados
    TRADIÇÃO - A estilista Martha Medeiros: valorização dos rendados (Gustavo Sarmento/.)

    Há, contudo, um interessantíssimo movimento de retomada de práticas antigas. Membros da geração Z, justo eles, com pouco mais de 20 anos, nascidos em um ambiente já completamente digital, ensaiam um retorno ao mundo manual. Não se trata de uma ruptura total com a tecnologia, mas da busca de algum descanso diante de tanta conexão. Não é, reafirme-se, uma espécie de neoluddismo, como o daqueles personagens que protestavam contra os teares na gênese da Revolução Industrial. Três em cada cinco jovens, hoje, afirmam ter vontade de desligar um pouquinho do wi-fi, de acordo com uma pesquisa feita pela consultoria especializada Mintel. Que tal, então, fazer algo com as próprias mãos, que não seja tocar no TikTok? Dois bons exemplos dessa tendência vêm do mundo do esporte, e despontaram na Olimpíada de Paris. O britânico Tom Daley, medalha de prata na plataforma de 10 metros sincronizada, é conhecido pelos suéteres de tricô que produz. Tem até conta no Instagram exclusiva para exibir suas criações. A japonesa Ami Yuasa, ouro na estreia do breaking nos Jogos Olímpicos, separa tempo para crochetar casacos, gorros e outras peças de roupa. No esporte (esporte?) que ela representa, a moda anda junto com a técnica de dança. Os dois mostram que é possível aliar a boa performance atlética com outros interesses, que não seja apenas viralizar nas redes sociais.

    selo jovens

    Muitas vezes, esse aprendizado começa como hobby. A estudante Andressa Silva Xavier, de 18 anos, integra o grupo de jovens artesãos do Vale do Jequitinhonha, formado por 55 municípios mineiros, que se destaca pelo trabalho com a cerâmica, entre outras atividades culturais. A região ficou conhecida pelos filtros de barro em formato de cactos, pelas bonecas e objetos decorativos, vendidos nas feiras da região e para lojas de São Paulo e Rio de Janeiro. “O artesanato é uma terapia”, diz Andressa. “Quando você entra no Instagram, no X, no Facebook, sua cabeça fica a milhão. É tanta informação que não dá nem para pensar. Mas, quando estou fazendo uma peça de artesanato, eu aproveito para refletir. Desintoxica a mente”, diz ela. Simples assim.

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    MENTE LIMPA - Cerâmica do Vale do Jequitinhonha: prática de desconexão
    MENTE LIMPA - Cerâmica do Vale do Jequitinhonha: prática de desconexão (./Divulgação)

    Há também uma vontade de entender como as coisas são feitas e, se possível, aprender algumas técnicas. Thiago Endrigo, artesão, trabalha há cerca de duas décadas com a madeira e os chamados “fazeres tradicionais”. Criou o projeto Saber com as Mãos com a mulher, a educadora Giulia Ciavatta, para pesquisar e divulgar essas práticas. Hoje, dá aulas em escolas particulares, em unidades do Sesc e no próprio ateliê para públicos diversos. Percebe, cada vez mais, a alegria de quem se vê capaz de criar algo com as próprias mãos, a partir de matéria bruta. Um exemplo fundamental são as peças de marcenaria. “Você serra um pedaço de madeira e aplaina ou lixa e põe um acabamento. É simples. Mas, de repente, algo que não existia no mundo passa a existir e foi você quem trouxe aquilo ali”, afirma. Parece banal, pensamento um tantinho vago, mas alcançar algo concreto e palpável, em tempo de tanta efemeridade, virou quase um prêmio à inteligência do ser humano, um aceno a capacidades perdidas.

    Em outros casos, o que começa como mera curiosidade pode evoluir para a descoberta de um novo caminho profissional. A estilista Martha Medeiros conta que, quando começou sua carreira no mundo da moda, a renda era associada a algo antigo, pouco afeito às passarelas. Conseguiu mudar a situação e levar o trabalho das rendeiras do sertão nordestino para o mundo. Montou uma escola para capacitar profissionais e chegou a ter 400 artesãos atrelados a sua marca. “Vejo um movimento dos jovens querendo produzir as coisas com as mãos”, diz Medeiros. É fundamental, sim, que todos saibam o valor desse trabalho. “Uma menina que faz ponto-cruz tem que saber que ela não precisa viver só dos 200 reais que ganha ao fazer uma bolsa. Ela pode ganhar 500, 600, 700 reais por bordado, tirando duas horas do seu dia, sem deixar de estudar”, afirma a estilista. Iniciativas como essa ajudam a manter viva a cultura de geração para geração, atropelada pelo pá-pum de Stories, que somem logo ali na frente.

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    AGULHAS - O britânico Tom Daley: medalha de prata em Paris na plataforma: blusas de tricô
    AGULHAS – O britânico Tom Daley: medalha de prata em Paris na plataforma: blusas de tricô (@tomdaley/instagram; Patrick Khachfe/Getty Images)

    Por muito tempo, os ofícios ma­nuais foram vistos como ocupações de menor prestígio. Com exceção de alguns artesãos de destaque, trabalhar com as mãos era algo para quem não tinha ensino superior. Mas a situação vem mudando de forma acelerada. Nos Estados Unidos, dados apontam que a busca por um diploma universitário deixou de ser prioridade para 39% dos jovens, e 46% acreditam que a universidade não vale o que custa, segundo estudo feito pelo site Business Insider em parceria com o instituto de pesquisa YouGov. Para eles, a alternativa é buscar profissões que alguns anos atrás eram consideradas “menos nobres”. Na construção civil, por exemplo. A procura por cursos vocacionais em universidades comunitárias americanas — desplugados da tomada — cresceu 16% em 2023 em relação ao ano anterior, de acordo com o National Student Clearinghouse, órgão que fornece dados sobre o ensino superior.

    NA MASSA - A escola Le Cordon Bleu em São Paulo: jovens são 23% dos inscritos
    NA MASSA - A escola Le Cordon Bleu em São Paulo: jovens são 23% dos inscritos (./Divulgação)
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    A cozinha talvez seja o ambiente mais propício para verificar essa postura ao avesso do esperado para a geração conectada. A sede brasileira da centenária escola francesa de gastronomia Le Cordon Bleu tem registrado o aumento de jovens entre 18 e 27 anos matriculados nos cursos regulares e de curta duração. Neste ano, eles representam 23% dos inscritos. Em 2022, eram 12%. “Hoje a gastronomia já é a primeira escolha de muitos vestibulandos que acabaram de concluir o ensino médio”, diz Rosa Moraes, responsável pelas relações institucionais da Le Cordon Bleu São Paulo. “É claro que a carreira foi impulsionada também por outros fatores, entre eles, a projeção que muitos chefs alcançam na imprensa a ponto de se tornarem celebridades.” O fenômeno de popularidade dos astros da cozinha não é novidade. Contudo, o renovado interesse dos jovens por cozinhar é.

    ESTILO - A japonesa Ami Yuasa, ouro no breaking da Olimpíada: ela faz as próprias toucas e blusas de lã
    ESTILO - A japonesa Ami Yuasa, ouro no breaking da Olimpíada: ela faz as próprias toucas e blusas de lã (Dean Mouhtaropoulos/Getty Images; @gfc_ami/Instagram)

    Direto ao ponto: não há uma revolução nem adeus a toda tecnologia que nos trouxe até aqui e nos levará longe, debruçados em smartphones. Não será assim. Mas convém seguir o bonito conselho de Carlo Levi (1902-1975), poeta e pintor italiano: “O futuro tem um coração antigo”.

    Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906

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