Fundado no século III a.C. por um grupo de filósofos gregos, o estoicismo preconiza que, por meio de uma vida simples e disciplinada, seria possível alcançar a paz interior e a felicidade. Eles também acreditavam que podemos nos tornar pessoas melhores se aceitarmos sem lamentos e com coragem o que o destino nos reserva. Os ensinamentos remontam a Zenão de Cítio, um cipriota de posses que se encantou com a filosofia quando chegou a Atenas por volta de 300 a.C. O filho de comerciantes iniciou uma escola sob o “pórtico pintado” da cidade — “stoa poikile”, em grego, de onde vem o nome da corrente. O resto é história. Cleantes e Crisipo, seus sucessores, se encarregaram de difundir as lições e princípios, que tiveram influência duradoura no pensamento moderno e, vez por outra, encenam o que parece ser uma volta ao gosto popular.
“Sofremos mais na imaginação do que na realidade.”
Sêneca, preceptor de Nero e considerado um mestre da retórica
Os estoicos, a rigor, nunca saíram de cena. Na segunda metade do século XX, trabalhos sobre filosofia helenística do francês Michel Foucault e do britânico Anthony Long inspiraram pesquisadores contemporâneos, que passaram a publicar livros acadêmicos. Bebiam também de nomes seminais da Roma Antiga, como Sêneca, Epíteto e o imperador romano Marco Aurélio. Mais recentemente, o estoicismo ultrapassou os limites da academia e passou a interessar um público mais amplo. “Há um renascimento do estoicismo por motivações diversas”, disse a VEJA Aldo Dinucci, professor da Universidade Federal de Sergipe e autoridade nesse campo.
No período helenístico e romano, como notou o historiador e filólogo francês Pierre Hadot, a filosofia combinava teoria e prática. Havia escolas pelas quais os novatos optavam e, a partir dos estudos filosóficos, buscavam se transformar internamente por meio da reflexão sobre suas próprias crenças, tendo como objetivo a conquista da eudaimonia, termo grego que costuma ser traduzido um tanto imprecisamente por felicidade. “Ora, a felicidade é algo que se busca tanto na Antiguidade como nos dias de hoje, e os textos dos estoicos tratam muito disso”, diz Dinucci. “Não é de admirar que as reflexões dos antigos estoicos nos importem.”
“Faça cada ato de sua vida como se fosse o último.”
Marco Aurélio, notável imperador que sucedeu a Adriano
O “revival” pode ser atribuído a dois momentos decisivos do início do século XXI, ambos com repercussões globais. O primeiro foi a crise financeira de 2008, impulsionada pela quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, nos Estados Unidos. O outro, a pandemia de Covid-19, que cobrou a vida de quase 7 milhões de pessoas no planeta, 700 000 delas só no Brasil — em número que continua a crescer, ainda que mais lentamente. Nos dois casos, a humanidade teve de aceitar um fato cabal: certas situações fogem de nosso controle, e só nos resta refletir em torno delas. Ao mesmo tempo, foi necessário reconhecer que, como indivíduos, não temos o poder de consertar tudo. “Há muitos conselhos nos autores estoicos sobre como lidar com as adversidades”, disse a VEJA John Sellars, professor de filosofia na Universidade de Londres (leia abaixo), autor do ótimo Lições de Estoicismo (Sextante).
Prova de que o estoicismo voltou ao gosto popular está na quantidade de livros sobre a escola de Zenão que estão ocupando lugares de destaque nas livrarias. O americano Ryan Holiday é autor — com Stephen Hanselman — de Diário Estoico, que traz pensamentos dos principais filósofos para cada dia do ano, e acaba de lançar O Chamado da Coragem, ambos pela Intrínseca. A editora Somos Livros tem O Pequeno Manual Estoico, de Jonas Salzgeber, e Ser Estoico: Eterno Aprendiz, de Ward Farnsworth, entre seus títulos mais vendidos.
“As circunstâncias não fazem o homem, apenas o revelam a si mesmo.”
Epíteto, cujos escritos foram registrados por um aluno
Todos eles são como pontes para a leitura dos textos originais — e não há por que temê-los, em traduções muito boas para o português. Os estoicos de Roma, segundo os especialistas, são os melhores para serem lidos como ponto de partida. O mais prolífico foi Sêneca, considerado um mestre da retórica. O Manual de Epicteto, que o professor Aldo Dinucci traduziu do grego, foi escrito por Flávio Arriano, um aluno que sintetizou o pensamento do mestre por meio de aforismos. Por sua vez, o imperador Marco Aurélio deixou grande quantidade de anotações em cadernos pessoais, quase como se fossem diários, refletindo sobre sua vida e rotina como comandante militar. É um legado que provou ser eficiente nos momentos mais dramáticos da história — e que hoje, na ágora infinita e desordenada das redes sociais, merece atenção.
Terapia para a mente
Professor de filosofia da Universidade de Londres e autor do ótimo Lições de Estoicismo, John Sellars fala sobre a retomada da corrente.
Existe mesmo um renascimento do estoicismo? Há dez ou quinze anos, começou a haver muito interesse pelos estoicos entre a população em geral em razão de eventos que mexeram com o mundo. Acho que os escritos de Marco Aurélio sempre venderam bem, mas o leque de busca por outros autores se ampliou. Começamos a ver até vários grupos ao redor do mundo que se formaram, inclusive no Brasil.
Há até uma convenção, a Stoicon, certo? Sim. A primeira foi em Londres, em 2013. Depois de três anos na Inglaterra, trouxemos pessoas dos EUA para o grupo, que é chamado de Modern Stoicism (Estoicismo Moderno).
Como o estoicismo influenciou a sua vida pessoal? Há uma ênfase em colocar preocupações cotidianas em um contexto mais amplo, o que acho muito útil. Tentamos ir além de nossa visão estreita de mundo e ver as coisas de uma perspectiva mais objetiva. Refletir sobre o que podemos controlar e o que não podemos controlar também ajuda.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832