Modo artesanal de produzir cigarro é reavivado por nova turma de fumantes
Parece mais natural e menos nocivo, mas não é
O tabaco ingressou na história da humanidade há pelo menos cinco séculos, consumido com distintos propósitos por variados povos ao longo dos tempos. Para os indígenas, que comiam, bebiam, mascavam e aspiravam a essência das folhas, vista como sagrada, havia um caráter ritualístico. Mas foram os europeus, ao travar contato com a planta quando desembarcaram nas Américas, os primeiros a cultivar o fumo por prazer, hábito que se irradiou alimentando uma indústria movida a glamour. No século XIX, o cigarro, que era então enrolado a mão, acabou ganhando, por uma necessidade de escala, o formato atual — pequeno e cilíndrico. Pois justamente agora, era em que uma enxurrada de pesquisas científicas já demonstrou os malefícios de fumar, sepultando a aura de elegância que envolvia o gesto e felizmente baixando o número de adeptos mundo afora, uma turma cresce e aparece resgatando o antigo processo de enrolar o tabaco de modo caseiro, envolto em um papel de seda, rito conhecido globalmente, em inglês, como roll your own, ou enrole você mesmo.
A tribo que adere à crescente tendência do cigarro artesanal, antes encontrado majoritariamente nas áreas rurais do planeta, rejeita a versão industrial pelo excesso de aditivos e por achar — enganosamente, advertem os especialistas — estar diante de uma opção mais natural e menos nociva. São jovens, entre eles muitos universitários, que identificam no passo a passo da produção caseira um modo de vida mais cool e vagaroso, em contraste com o frenesi moderno. “É um hábito com um certo viés pós-hippie, de contracultura, bem diferente dos cigarros eletrônicos, que também se disseminam”, diz o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio. Desavisados que assistem à seda sendo cuidadosamente esticada para alojar o tabaco não raro pensam estar diante de outra erva, a maconha. Nesse nicho, aliás, misturas no conteúdo embalado são comuns. A estudante de cinema Gabriela Bagrichevsky, 22 anos, gosta de adicionar kumbaya — um blend de ervas como camomila, artemísia e jasmim. “O ritual de pegar a seda e picar as ervas me acalma”, diz.
A onda teve impulso nos últimos dois anos, quando as pessoas, no silêncio do isolamento pandêmico, fumaram mais — um ponto de retrocesso em meio a uma curva que cai ano a ano. Nos Estados Unidos, a venda de cigarros em geral subiu pela primeira vez em duas décadas, segundo a Comissão Federal de Comércio. No Brasil, pesquisa da Fiocruz revelou que 34% dos que ainda se mantêm fiéis ao hábito aumentaram o número de unidades consumidas diariamente. Foi nesse contexto que o cigarro para enrolar recebeu um empurrão como nunca antes, fazendo florescer um mercado de tabacarias (ou head shops, como são chamadas). Somando Rio de Janeiro e São Paulo, foram abertas 1 255 dessas lojas desde 2020. Gigantes da indústria, como British American Tobacco (BAT), exploram o nicho, mas são as empresas especializadas as que mais se beneficiam. A maior delas é a brasileira Handmade Brazilian Tobacco (HBT), responsável pelas três grandes marcas nacionais de tabaco in natura, que embute na estratégia de marketing embalagens biodegradáveis e produção orgânica. “Em dois anos, as vendas cresceram 20%, e não param, atingindo em cheio um novo público”, relata o CEO Giorgio Volonghi.
Mas que ninguém se engane: a versão natureba não oferece nenhuma vantagem à saúde em relação à tradicional e pode ser tão ou mais prejudicial que ela. É verdade que contém menos aditivos, mas em compensação leva três vezes mais nicotina do que a unidade industrializada. E, como a maioria das pessoas não acrescenta filtro, a emissão de fumaça ocorre em níveis mais altos, elevando a inalação daquele vapor repleto de substâncias tóxicas. “Ser natural não significa que não faz mal”, alerta Maria Enedina, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia. Estudos enfatizam, inclusive, que as doenças ligadas ao tabagismo aparecem com os dois tipos de cigarro, assim como entre os adeptos da modalidade eletrônica, outra que se vende como menos lesiva, embora sem comprovação, e tomou contornos de epidemia nos Estados Unidos. A legião que abraça tal versão, semelhante a um pen drive e proibida no Brasil, se situa em uma faixa etária um pouco mais jovem e mais ligada à tecnologia. “Em todos os casos, a nicotina provoca dependência, uma vez que atua no sistema de recompensa do cérebro, causando prazer imediato”, explica Liz Almeida, do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Um dos mitos que ronda os fumantes da ala “enrole você mesmo” é que, sendo mais concentrado, o cigarro artesanal acaba sendo consumido em menos quantidade. “Achei que a mudança do industrializado para o enrolado me faria moderar o vício, já que a erva pura é mais forte, mas acabei me acostumando e não diminuí nada”, reconhece a estudante de direito Isabelle Souza, 28 anos. A turma do roll your own também aprecia o programa coletivo, cada qual com sua seda e seu tabaco, unidos pelo mesmo rito. Eles vão na contramão das estatísticas, que mostram, só no Brasil, um declínio de 50% no número de fumantes nas últimas três décadas, um feito louvável que resultou de muita campanha contra. Não custa lembrar que os tempos daquele glamour que se estendia das baforadas do bad boy James Dean ao requinte da cigarrilha de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo são coisa do passado.
Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791