Sente-se e leia com calma o que vem a seguir, porque as cadeiras são um modo de entender o caminhar da civilização — servem de gatilho para traduzir a explosão do novo, o ritmo das escolas de arquitetura, o permanente atrito entre o que parece ter ficado no passado e o que se desenha para o futuro. Uma extraordinária exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA — Crafting Modernity: Design in Latin America, 1940-1980 —, é um convite, até meados de setembro, para conhecer o cotidiano doméstico, como quem se aboleta em cima de quatro pés, de lares de famílias da Argentina, Chile, Colômbia, México, Venezuela e Brasil, é claro. É o recorte histórico de um tempo fascinante, de grandes transformações. Um período, no pós-guerra, de industrialização, de troca dos importados pelos produtos locais, de descoberta de materiais inovadores. Nas salas da mostra há também mesas, camas, armários, pôsteres e fotografias, a vida como ela era, e cujos ecos ainda nos assombram com elegância — mas nada tira o centro das atenções das cadeiras e poltronas, insista-se. E os outros objetos que se virem para conquistar alguma relevância.
Mas por que as cadeiras? O filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007) tinha uma pista. Para ele, os assentos são as peças que mais retratam as relações humanas, a conversa, a sociabilidade, o ambiente. “A configuração do mobiliário é uma imagem fiel das estruturas familiares e sociais de uma época”, escreveu. As cadeiras servem para tudo — inclusive para sentar, em casamento de forma e função, na celebrada fórmula intuída pelo arquiteto americano Louis Sullivan (1856-1924). Já não bastava postar-se ereto, como sugeriam os tradicionais e formais modelos de influência europeia — o moderno pedia leveza, beleza e produção em grande escala. Os exemplares do MoMA são como um manifesto cultural — e, por que não, político. Ninguém melhor do que a arquiteta italiana radicada no Brasil, Lina Bo Bardi (1914-1992), para costurar a prosa. Ela é um dos destaques do evento — tido como um dos mais interessantes de Nova York, agora.
Lina aparece com duas peças — a Bowl, de 1951, tigela de plástico e espuma, e o Tripé de Ferro, de 1958, além de imagens da Casa de Vidro, sua residência em São Paulo (dá para visitá-la). Não é preciso esforço para perceber o espanto provocado por aqueles desenhos nos idos dos anos 1950, de rompimento com o classicismo rococó que vigorava, como quem transformava Ouro Preto em Brasília enquanto João Gilberto dedilhava no violão, dizendo “chega de saudade” de mãos dadas com Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Uma frase de Lina resume a ideia: “Temos essa convicção, e estamos persuadidos, de que uma cadeira caipira de grumixaba e tábua é mais moral e importante do que um divã de babados de estilo francês”. É.
Para um brasileiro, a Crafting Modernity é passeio histórico e nostálgico. Há Lina, para quem “inventamos a arquitetura apenas subindo uma escada, atravessando uma sala, abrindo uma porta ou sentando numa cadeira”, mas há muito mais. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1918-2021) tem lá a icônica Paulistano. Sérgio Rodrigues (1927-2014) desponta com a Cadeira Mole e a Niemeyer, homenagem às curvas sensuais e elegantes do criador de Brasília ao lado de Lúcio Costa. Martin Eisler (1913-1977), austríaco radicado no Brasil, é representado pela Costela de Adão. Não poderia faltar a namoradeira de Zanine Caldas (1919-2001), esculpida em um tronco de árvore, incentivo ao bate-papo “apertado assim, colado assim, calado assim / abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”.
É interessante perceber agora, olhando para a coleção, um capítulo da civilização que nos trouxe até aqui. “O design era a arte do futuro porque trazia elementos artísticos aliados a uma fabricação em maior escala” diz o historiador Jayme Vargas, coautor do livro Horizonte Ampliado (Editora Olhares). Não por acaso, muitas das cadeiras podem ainda hoje ser vistas em casas e consultórios. “Era a arte mais acessível e democratizada para um número maior de pessoas”, afirma Vargas. Na imprensa americana, o contato com os móveis latino-americanos tem o dom de uma descoberta. Há quem a compare ao susto dos anos 1960, quando os americanos foram apresentados aos desenhos do dinamarquês Arne Jacobsen (1902-1971) e do americano Charles Eames (1907-1978), criadores de assentos que brotam hoje em qualquer botequim pé- sujo, mas que representaram uma revolução. “Não consigo me lembrar da última vez que cobicei tantas cadeiras lindas”, escreveu Michael Kimmelman, crítico de arquitetura, para o The New York Times.
As descobertas tardias — para quem não cresceu pelas bandas de cá — merecem celebração. “As cadeiras produzem memórias afetivas e contam frações de um tempo para as futuras gerações”, diz Jader Almeida, premiado designer e arquiteto brasileiro. Ah, como sentávamos bonito, e assim traduzíamos o Brasil.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888