Muito além do sexo, apps como o Tinder viram alicerce de relações duradouras
Eles estão aumentando as opções e o tempo de escolha do parceiro ideal
Se tudo o que dizem é verdade, o amor vive uma crise de relações públicas: nenhum jovem quer saber de vida a dois, solteiros se apegam à almejada liberdade e o casamento é uma instituição falida. Mas decretar a morte do romance é precoce. Mais correto seria dizer que as relações afetivas estão se reinventando — e o motor por trás das mudanças são os onipresentes aplicativos de namoro. Em seu mais recente livro, Find Love (Encontre o Amor), o sociólogo americano Paul Brunson, que também atua como consultor global do mais conhecido desses apps, o Tinder, baseia-se em um conjunto de pesquisas para expor e analisar as reviravoltas ocorridas na última década nesse jogo arriscado que é navegar o romance moderno pelas ondas da internet.
O processo, explica Brunson, foi lento e gradual — o próprio Tinder, introdutor do termo match no dicionário cotidiano, acaba de completar dez anos. Mas um levantamento feito para VEJA pelo instituto Quaest confirma que, além de simples veículos para conhecer gente nova, os aplicativos de namoro resultaram em relacionamentos sérios e duradouros para 40% dos usuários brasileiros. “É uma resposta natural às mudanças sociais. Estamos sempre on-line, o que diminui a chance de uma troca de olhares ao acaso ou de conversa fiada. A prioridade dada ao trabalho também reduziu o tempo e a disposição para encontrar alguém em pessoa”, afirma Alicia Walker, antropóloga da Universidade Estadual do Missouri. “Não me surpreenderia se a parcela passar de metade na próxima década”, completa. De fato, segundo a Quaest, 55% dos usuários daqui acham que os apps agilizam a escolha ao filtrar parceiros potenciais, o que evita “perder tempo com quem não interessa”, e ao alinhar as expectativas no bate-papo virtual, o que “é mais direto do que ir para a balada”.
A nova dinâmica romântica, como era de esperar, transformou a cara do flerte moderno. Um fator positivo citado por Brunson é que o rigor na busca de um companheiro de vida aumentou junto com a gama de possibilidades nas plataformas — ainda que a busca comece como coisa superficial, o usuário é forçado a refletir tanto sobre o que procura quanto sobre si mesmo, e isso, na teoria, resulta em escolhas mais conscientes e relações gratificantes. Não que seja fácil. Antes de conhecer Rafael Teixeira, 32, pelo Tinder, a analista de comunicação Adriana Peres, 34, calculou ter trocado mensagens com dezenas de pretendentes e marcado encontro com seis. “Tive decepções, mas o processo me ajudou a achar alguém que vale a pena”, diz ela, sete meses após engatar o namoro — que vai muito bem, obrigada. Adriana é também integrante do time de mulheres que se sentem mais seguras para tomar a iniciativa: uma em cada cinco dizem que devem isso aos apps, segundo a Quaest.
Mais uma mudança significativa: o namoro on-line define de forma contundente o momento em que, ao redor do globo, os planos de casamento ficaram para depois. Nos Estados Unidos, o primeiro casório acontece, em média, aos 29,5 anos, oito a mais do que nos anos 1970. No Brasil, o salto foi de cinco anos, e agora a média de idade é 31,3. Resultado: as pessoas passam mais da metade da vida adulta solteiras. “Ter mais opções pode provocar a sensação de que sempre haverá alguém melhor por aí”, avalia Jacqueline Olds, autora do livro Americano Solitário. Para reduzir as opções infinitas, a oferta dos apps de namoro se tornou segmentado — há um reservado aos ricos e famosos (Raya), outro aos conservadores (The Right Stuff) e até o dos veganos (Veggly).
O ritmo mais lento e cauteloso das interações amorosas que levam ao casamento difere tanto daquela simples e pragmática união entre dois seres humanos que foi pré-requisito para a sobrevivência da espécie quanto do amor romântico popularizado na Idade Média. Não que a luz de velas e o buquê de flores tenham sido varridos do mapa amoroso. “O ritmo dessas plataformas de paquera pode parecer frenético, mas elas favorecem o que chamo de amor lento”, disse a VEJA Helen Fisher, professora de antropologia na Universidade Rutgers. Um casamento tardio, com tempo para autoconhecimento, para encontrar pessoas e desconstruir fantasias, torna a relação mais feliz e duradoura, mas exige, em contrapartida, um mínimo de foco. “Precisamos aprender a usar os apps a nosso favor. O cérebro só consegue escolher entre cinco e nove opções. Depois disso, paralisa”, explica Fisher, alertando contra o consumo compulsivo de matches. Há catorze anos com o marido que conheceu no site Par Perfeito, a psicóloga Liça Bomfim, 84, é prova viva de que os smartphones não arruinaram o romance, pelo contrário. “Aos 70, depois de um divórcio, a experiência me deu ferramentas e coragem para me apaixonar de novo, e melhor”, comemora Liça. O amor, como se vê, segue vivíssimo. Que bom.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903